Ser Pai

A FUNÇÃO DO PAI NO FILME POLTERGEIST

Mistério, terror e um pai ausente. Embora não assine a direção, Poltergeist é atribuído a Steven Spielberg, autor do argumento no qual se baseia o filme. Num outro filme anterior, Contatos Imediatos de Terceiro Grau, Spielberg já tinha desenvolvido o mesmo tema: uma criança seqüestrada por forças estranhas. Além desta semelhança estrutural, os dois filmes são manifestadamente diferentes. Contatos Imediatos puxa mais para a pieguice e Poltergeist mais para o lado do terror.

Por mais que esta insistência no tema seja seu sintoma, uma leitura psicanalítica do filme torna-se pertinente sem necessariamente tomar Spielberg como sujeito. Na medida em que toda criança está inserida numa linhagem (ou seja, é filho/a de alguém), sua história pode ser sempre interpretada desde uma perspectiva do complexo de Édipo e da castração. Se tais articulações foram premeditadas ou não na elaboração do roteiro pouco importa, pois podem surgir simplesmente impulsionadas pelos conteúdos inconscientes do realizador. Freud dizia que, se Édipo-rei emociona tanto um auditório moderno quanto o auditório grego contemporâneo da peça, seus efeitos devem ser atribuídos à natureza peculiar do material no qual se apóia.

Considerando que Poltergeist constitui uma versão do complexo de Édipo, uma interpretação poderia ter como parâmetro o conceito de função paterna. Corresponde ao pai, representante da cultura, ser o lugar-tenente da lei, interditando o incesto, separando com sua palavra o filho da mãe e permitindo, a partir desta separação simbólica, a possibilidade de o filho se estruturar como sujeito independente, com um desejo próprio.

No filme, a menininha Carol Anne, que era a única a ouvir as fantasmagóricas vozes vindas do aparelho de tevê, some, e, no lugar desconhecido aonde foi parar, só escuta a voz da mãe. Até certo ponto, dá para dizer que essa desaparição, essa maneira de ficar presa num lugar aonde só existe a mãe, é a alegoria de uma ausência ou de uma falha na função paterna. Por não ter funcionado a separação simbólica, a menina não teria outro destino senão ficar presa ao universo de desejo da mãe.

O conceito de função paterna não se esgota numa única perspectiva da figura do pai. O lado social de Freeling-pai, economicamente bem-sucedido e investido de todos os emblemas da prosperidade, não é suficiente para ele poder exercer a função que lhe corresponde. Está em questão até que ponto sua palavra é aceita no contexto familiar. Pouco adianta ser reconhecido socialmente se, por alguma falha dessa ordem, uma filha fica fora de seu alcance.

Essa impotência paterna já está manifesta nas primeiras cenas do filme, quando a Carol Anne está conversando com as vozes na televisão e o pai está sentado na poltrona, dormindo. Essa dormir é a analogia de um pai que não funciona. Se nós situarmos as vozes vindas da televisão como significante da função simbólica, então não é a palavra do Freeling-pai que funciona, mas uma outra vinda de fora, do além. Acontece, então, um curto-circuito na família. Há uma impossibilidade de resolver as coisas dentro do contexto endogâmico. Por isso torna-se necessário trazer alguém de fora para ajudar.

Lucros sinistros - Num primeiro momento, Freeling-pai recorre à universidade e consegue o apoio de uma equipe de parapsicólogos, que se instalam na casa dos Freeling com diversos aparelhos eletrônicos sofisticados. Eles medem e constatam os fatos, mas não podem solucionar nada. Chamam daí uma exorcista anã, a Tangina, que até certo ponto ocupa o lugar de estrangeiro na casa dos Freeling e também exerce papel semelhante ao de um psicanalista. Ela veicula um saber na hora em que dá explicações a respeito da alma dos mortos; e, por outro lado, propicia o momento analítico quando força e insiste para que o pai chame a menina que só ouvia a voz da mãe. Tangina diz ao pai que deveria até ameaçar a filha com uma surra para ela dar bola à palavra dele. O pai, um pouco bobo, protesta dizendo que nunca bateu na filha. A baixinha insiste, o pai toma uma atitude mais enérgica, chama a filha que responde obedecendo à ordem do pai de colocar-se no lugar onde pudesse ser resgatada.

A operação do resgate é bem-sucedida, mas mesmo assim os fenômenos estranhos recomeçam a acontecer e outra vez as crianças correm o risco de serem absorvidas. Com a ajuda da exorcista foi possível salvar Carol Anne, mas de alguma forma não tinha sido suficientemente articulada e daí a repetição. O que continuaria torto naquela casa ? Parece que continua torto tudo aquilo que tem a ver com a base simbólica de sustentação do pai; especificamente, há algo errado em relação ao chefe da imobiliária onde ele trabalha. O Freeling-pai, que deveria ser a figura representativa da autoridade na família, por sua vez está submetido a uma outra autoridade. Aparece aí a duplicação da figura do pai.

Ficamos sabendo que o chefe de Freeling-pai tinha feito uma trapaça para lotear as terras vendidas pelo próprio Freeling: havia um cemitério nessas terras cujo conteúdo, os mortos, não foi mudado, mas somente as lápides dos túmulos. Os Freeling moravam agora nessas terras. Os mortos, perturbados em seu descanso eterno, reapareceram para se vingar, perturbando os vivos. Assim, absolutamente tudo o que o filme ensina decorre de um episódio anterior: a inescrupulosa sede de lucros da especulação imobiliária, encarnada na figura do chefe, é a culpada pelos fenômenos estranhos. Isso mostra especificamente uma transgressão: se o sucesso de Freeling, recordista de vendas do loteamento, baseia-se numa falta, até que ponto este pai - mesmo desconhecendo tudo - terá condições para cumprir a sua função como garantia da lei ? Uma falta na transmissão da lei na diacronia genealógica produz efeitos catastróficos. Os filhos acabam pagando pelos pecados dos pais.

Enfim, um pai - No final do filme, quando a mãe consegue resgatar as crianças, nesse momento o pai está chegando em casa junto com o chefe. Percebendo tudo o que está acontecendo, o pai começa a xingá-lo e culpá-lo pela situação toda. Dá para situar aí o que não teria acontecido num primeiro momento do exorcismo e teria dado lugar a que tudo continuasse acontecendo. Estava faltando o pai poder situar o nível da transgressão anterior e poder responsabilizar alguém.

No final, a casa dos Freeling se encolhe no ar e nada fica de tudo aquilo. A família consegue sair em cima da hora, vai embora e acaba passando a noite num hotel de estrada. É interessante notar que a última cena do filme, assim como a última frase de um texto, faz um après-coup que ressignifica o texto inteirinho. No começo do filme aparecia o Freeling-pai dormindo e deixando a filha junto com o televisor ligado. Já na última cena, o que vemos é a família entrando no quarto do hotel, a porta se fechando, mas logo em seguida a porta se abre outra vez e o pai joga para fora o televisor. Metaforicamente, isso mostra que o pai teria conseguido, até certo ponto, restituir a sua função através dessa disjunção: ou o televisor ou o pai, um excluindo o outro.

O televisor representa o lugar fechado do que era familiar e agora tornou-se estranho. É a angústia, a sensação de impossibilidade de encontrar uma saída: o que Freud chama de "sinistro".

Depois de tantos sustos, o filme conclui com um happy-end : o pai recupera seu lugar.

Written by Oscar Cesarotto - Psicanalista.

Imprimir