A EFETIVAÇÃO DA DISREGARD NO JUIZO DE FAMÍLIA
Sumário
1. Regime de bens na sociedade conjugal. 2. Regime de bens no concubinato. 3. Dissolução afetiva e partilha de bens. 4. O mau uso da pessoa jurídica em fraude à meação. 5. Personalidade jurídica e sua desestimação. 6. O processo judicial de separação. 7. A efetivação da disregard na separação judicial. 8. A efetivação da disregard na dissoluçáo da união estável. 9. . A disregard na medida cautelar. 10. A disregard e a divisão de quotas sociais. 11. A desconsideração da personalidade jurídica no âmbito dos alimentos. 12. Disregard e perícia contábil. 13. A desconsideração da personalidade jurídica na execução de alimentos. 14. Bibliografia.
1. REGIME DE BENS NA SOCIEDADE CONJUGAL
Ao se casarem, podem os nubentes optar por qualquer um dos quatro modelos de regime de bens previstos e regulamentados na codificação civil brasileira. Segundo o Código Civil brasileiro, marido e mulher assumem com as suas núpcias e por sua livre escolha o regime de bens que cuidará de disciplinar as relações econômicas resultantes do seu casamento, pertinentes ao tempo de efetiva constância e convivência desse seu matrimônio.
Salvo a escolha pactual do regime da absoluta separação de bens, usualmente por eleição contratual ou pelo simples silêncio, organizam os cônjuges um regime patrimonial denominado de sociedade conjugal, que no dizer de Spota1 começa com a celebração do matrimônio. Segundo a legislação substantiva brasileira, este regime econômico conjugal só deveria terminar pela dissolução do casamento, quer decorresse da morte de um dos cônjuges, quer da circunstancial anulação do casamento, da separação judicial ou por conseqüência do divórcio.2
Uma vez escolhido o regime de bens e selado pelo celebrar das justas núpcias, deita sobre aquele casamento o princípio da imutabilidade do regime eleito, consagrado pelo artigo 230 do Código Civil e idealizado para assegurar que pressões e falsos encantos de um dos cônjuges não permitam, com a fraqueza do outro, obter a mudança do regime econômico matrimonial, com grave risco para os seus haveres conjugais e possível prejuízo para os credores.3
Percebe-se nesse dispositivo a primeira preocupação do legislador com a eventual burla na divisão conjugal dos bens matrimoniais4, quando proíbe terminantemente toda e qualquer alteração do regime de bens após a celebração do casamento.
Deve ser no entanto destacado que, não obstante a legislação brasileira externar a perpetuação do regime matrimonial enquanto não dissolvidas as núpcias pela morte, pela separação judicial ou pelo divórcio, sensível doutrina e atuante jurisprudência inclinam-se por reconhecer efeitos patrimoniais à fática separação.
Assim, por analogia ao oitavo artigo da lei divorcista, que cuida de conferir efeito retroativo à judicial separação de corpos deferida liminarmente em juízo, também quando presente a informal separação de fato entre marido e mulher deve o legislador atribuir efeitos jurídicos a este importante evento fático, como real termo final da comunicação dos bens conjugais.5
2. REGIME DE BENS NO CONCUBINATO
Ao lado do casamento figura a relação concubinária entre um homem e uma mulher, que vivem como se casados fossem, dando à sociedade e ao derredor dos conviventes a precisa imprecisão de que constituem uma nítida família conjugal, pois organizada nos moldes do casamento tradicional, apenas que subtraída da prévia formalidade de sua pública celebração.
O texto constitucional passou a identificar nestes pares concubinos uma legítima entidade familiar, abrindo espaço legiferante para textos infraconstitucionais editados em dezembro de 1994, com a Lei 8.971, e em maio de 1996, através da Lei 9.278, com o propósito de traçar as linhas que definem os direitos e os deveres requisitados na conceituação social e jurídica de uma estável união de fato.
Rodrigo da Cunha Pereira6 pontua, com a peculiar clareza de seu texto jurídico, já não mais haver dúvida de que na atualidade uma união estável, séria e prolongada, como destaca, uma vez dissolvida pela ruptura do vínculo concubinário ou pelo falecimento de um deles, implique a comunhão de interesses que se corporificam pela eventual formação de um patrimônio comum, uma massa concubinária de bens, a merecer uma igualitária partilha.
Entre concubinos a divisão do acervo constituído na esteira do regime da comunhão limitada de bens tem a sua gênese no artigo 5° da Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, ao ordenar a divisão de móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, pois passam a ser considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, a ambos pertencendo, salvo estipulação contrária em contrato escrito.
Novidade legal, o pacto anteconcubinário deveria guardar os mesmos princípios de valor e formação previstos para o contrato pactante do casamento, até em nome da máxima dogmática de que um instituto não deve conter mais privilégios do que o outro, guardando entre eles a mais absoluta similitude de direitos e deveres, pois que repugna à sociedade apontar divergências de tratamento.
Portanto, embora a lei delegue aos companheiros a aptidão de eles convencionarem suas relações patrimoniais e, na falta de um contrato, entre eles vigore o regime legal do artigo 5° da Lei 9.278/96, ela é omissa no tocante ao momento da estipulação do pacto entre os companheiros.
A vaguidade do dispositivo sob comento permite argumentar que no plano teórico o pacto patrimonial dos concubinos poderia ser firmado a qualquer tempo do relacionamento, mesmo no seu intercurso. Entretanto, esta não seria a interpretação analítica mais coerente e consentânea com o modelo conjugal em que se inspira claramente o concubinato. A despeito do contrato concubinário, defende Guilherme Calmon Nogueira da Gama7 a sua posição de o pacto antenupcial servir de alicerce da convenção concubinária, em que sua realização deve preceder a própria configuração da convivência, assim como o regime conjugal de eleição contratual precede o próprio casamento.
Há notória dificuldade prática nessa precedência pactual ao concubinato, até porque a convivência estável é relação de trato sucessivo, contínuo como o leito de um rio, cujo volume pluvial cresce à medida que as águas seguem o seu natural curso, surgidas de uma pequena mas determinada vertente.
Assim pode ser visto que, em princípio, o pacto anteconcubinário admite variadas incursões interpretativas, que lhe retiram a mínima segurança contrariamente observada dentro do casamento. Inexiste na união estável um momento temporal que limite a feitura final do pacto anteconcubinário, assim como não há regra expressa quanto à necessidade do registro do contrato, essencial para sua eficácia contra terceiros, como oportunamente observa Gama8, nem mesmo há exigência da forma pública, servindo como porta de acesso à Fácil burla do regime de bens de concubinos.
Logo, o convivente mal intencionado haverá de encontrar na relação de concubinato via expedita e de trânsito mais relaxado, no desvio traiçoeiro da meação concubinária, já que, por enquanto, não foi possível encontrar qualquer esforço do açodado legislador em criar reais mecanismos de efetiva proteção do acervo concubinário, deixando a sua riqueza material ao alvitre da sorte e da boa-fé do concubino que se encontra na titularidade e na administração destes bens hauridos por decorrência de um estável casamento informal.
Portanto, é fácil presentemente perceber que o legislador quase sempre se olvida de inserir no seu texto regulador instrumentos eficazes de proteção das metades patrimoniais que cônjuges e concubinos reivindicam quando se fundem em afeição e sociedade.
3. DISSOLUÇÃO AFETIVA E PARTILHA DE BENS
Há toda uma extensa gama de causas geradoras da discórdia conjugal, que levam à dissolução judicial do casamento. Este trabalho não comporta desvendar os mistérios desta intrincada teia que desarma o sistema emotivo dos cônjuges embora a sua referência faça-se de incontornável necessidade, para buscar demonstrar que é freqüente testemunhar, em juízo, como a raiva, a ira e o repentino ódio tornam-se instrumentos que passam a responder ao desapego demonstrado pela alma da pessoa ainda amada.
Por ocasião da separação, usualmente quando eleita a via litigiosa, diante da resistência separatória daquele que não vê razões para a ruptura afetiva, adverte Maria Tereza Maldonado9 ser prevalente o aspecto comercial do casamento, no qual o amor recolhido pela negada correspondência afetiva cede espaço fácil e absoluto a uma visão eminentemente mercantilista daquele relacionamento que se esboroa, em que ganhos e patrimônio são manipulados para a sua partilha desigual, quando não for possível esvaziar completamente a meação do parceiro ainda desejado, mas cujo amor feneceu. De outro lado, receitas e riquezas desmoronam de inopino, num sovado discurso de uma debáclê financeira que como um vírus se inocula nos processos separatórios, na viva ânsia de buscar o mínimo arbitramento de uma pensão judicial, até na esperança de que a absoluta dependência econômica inspire a reconciliação forçada e, se irreversível a ruptura, calhe como a sórdida vingança de compensar com dinheiro e bens o frustrante sentimento da rejeição.10
4. O MAU USO DA PESSOA JURÍDICA EM FRAUDE À MEAÇÃO
Inegável que as sociedades comerciais constituem uma realidade jurídica, as quais, assim expressa Eduardo Zannoni,11 a lei reconhece como um recurso técnico para que um grupo de indivíduos possa realizar a lícita finalidade a que se propõe. Agora, é bem verdade que no passado, e assim também argumenta Calixto Salomão Filho,12 o conceito absoluto de personalidade jurídica permaneceu rigidamente intocável, cuidando o artigo 20 do Código Civil brasileiro de salientar o princípio geral da separação entre a sociedade e o sócio.
Através deste velho postulado que separa a pessoa jurídica da pessoa física de seu sócio, e que estabelece patrimônios diversos e responsabilidades dissociadas, não obstante os largos benefícios econômicos e de desenvolvimento advindos da personifcação societária, ampla porta foi aberta para que a utilização indevida do fim societário se prestasse como instrumento de fraude aos interesses de terceiros.
Protegendo sócios inescrupulosos sob o invulnerável manto da personalidade jurídica, a figura societária passou a servir como um perigoso instrumento de obtenção de resultados ilícitos e nunca desejados pelo legislador comercial - seguro da sacra afirmação de absoluta separação de patrimônios e de responsabilidades -, que deixavam qualquer Juiz prostrado e inerme de soluções judiciais que não passassem por complicadas teias processuais envolvendo terceiros prejudicados, sócios e sociedades, todos enredados na intrincada busca da anulação dos atos societários.
Conforme artigo antecedente,13 referi que com a personalidade própria e autonomia patrimonial distinta dos bens pessoais dos seus sócios, criou-se um caminho amplo, e até então completamente incontrolado, de uso da pessoa jurídica como anteparo da fraude, especialmente no campo das relações conjugais, pois a aquisição de bens próprios do casamento em nome direto de uma empresa ou até a maliciosa transferência dos primitivos bens matrimoniais para o acervo social vinham e seguem servindo de regra a propósitos notadamente abusivos, já que visam fraudar a meação nupcial.
Efraín Richard e Orlando Muiño destacam esta notória tendência do uso indevido da personalidade jurídica e convidam à reflexão de uma total revisão da doutrina da personalidade jurídica que se mostra plenamente inadequada diante do perfil da simulação, da fraude e do abuso, que grassam soltos diante do surrado conceito da sacralizada personalização. Segundo aqueles autores, uma corrente muito intensa tem tratado de desconhecer a personalidade jurídica da sociedade, desestimando-a por razões de fraude e simulação, particularmente em causas vinculadas à legítima hereditária ou à sociedade conjugal.14
No campo da dissolução judicial do casamento e agora também na seara da união estável, alçada pelo texto constitucional à condição de família, com regime legal de bens de metades condominiais e de partes iguais,15 encontra-se igualmente, largo amparo e correlata aplicação processual da teoria da desconsideração da personalidade da sociedade.
Portanto, no casamento e na união estável, há larga utilização da teoria da disregard, que trata de descobrir o fim ilícito que a sociedade encobre, penetrando por detrás da máscara societária sob a qual o sócio se esconde e, ao desestimá-la, frustrando o resultado antijurídico que se pretendeu alcançar com a sociedade pré-constituída.
Referi noutra oportunidade quão difusa e producente a aplicação da despersonalização social no campo do Direito de Família, principalmente perante a diuturna constatação, nas disputas matrimoniais (e também dentro do concubinato stricto sensu, qualificado), de o cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, se não todo, ao menos o rol mais significativo dos bens comuns. 16
Fácil concluir que desaguando todo e qualquer patrimônio com alguma razoável expressão econômica para o rol de bens da pessoa jurídica administrada por um dos cônjuges ou concubinos, com mais larga aplicação ao matrimônio, fica expedito e livre o trânsito do parceiro empresário. Este se vê dispensado de prestar contas da circulação que empreende aos bens que deveriam ser comuns e, particularmente, liberado da outorga uxória, já que em tempo de maior turbulência nupcial não precisa arquitetar desculpas para conseguir que a esposa assine a transferência de bens imóveis próprios, pois todos eles já constam como se pertencessem à sociedade jurídica, embora sirvam exclusivamente aos interesses da sociedade conjugal ou da sociedade concubinária.
Noutras ocasiões o parceiro que já vinha computando os bens conjugais no patrimônio da empresa de que só ele participa como bem apresto, preocupado com a partilha judicial da valorização da sociedade comercial, pode pura e simplesmente, às vésperas de seu intento separatório, antes mesmo de denunciá-lo à mulher, efetivar a sua aparente retirada da sociedade, transferindo a sua participação para um outro sócio, mero presta nome. Depois de judicialmente separado, ou dissolvida a sua sociedade de fato, ele retorna à empresa e à livre administração daqueles bens societários que representavam significativa parcela do acervo comum.
Essas são apenas algumas das idéias de que se servem sócios comerciais para reter ou reduzir alimentos, ou a meação de seus sócios conjugais. Zannoni17 expressa com pertinente clareza esta margem de controle sobre os bens e a dependência alimentar do cônjuge, quando o esposo empresário ou industrial se serve da forma societária apenas em seu próprio benefício.
5. PERSONALIDADE JURÍDICA E SUA DESESTIMAÇÃO
Dentro do Direito de Família, a penetração do véu societário torna-se uma poderosa arma a favor da parte mais débil do relacionamento afetivo, que, usualmente, se torna vítima da fraude ou do abuso societário. Ricardo Guilminelli18 diz que o maior mérito do instituto da desconsideração da personalidade jurídica é o fato de a sua inoponibilidade permitir uma oxigenação do direito societário, ao alcançar quem dele se utiliza com torpeza e, oculto atrás da máscara social, deseja sair impune de suas obrigações como cônjuge, como concubino e mesmo como devedor de uma obrigação de alimentos.
A fraude à lei e o abuso ou simulação na utilização da personalidade jurídica tornaram-se um adequado veículo de burla ao sistema codificado do regimes de bens. Vedando qualquer mudança na convenção patrimonial de origem e cercando a massa de bens conjugais com princípios de ordem pública que inibem a transmissão unilateral de direitos reais, sem o expresso consentimento do parceiro co-proprietário, bastava incorporar os bens do casamento a uma sociedade comercial para que toda esta segurança jurídica virasse letra morta da lei.19
Através da teoria da disregard doctrine não é anulada e nem se descarta a personalidade jurídica, mas, somente, desconsiderada do caso concreto, a eficácia do ato fraudulento perpetrado em nome da pessoa jurídica, porém com c objetivo de favorecer, em geral, a pessoa de um sócio, em detrimento do terceiro
Conforme pude explanar noutra oportunidade,20 sem discutir a sua validade, o Juiz ignora pura e simplesmente o ato fraudulento executado em comando contrário à lei, mas mantém intocados todos aqueles outros atos e negócios societários não manchados pela fraude ou pelo abuso de direito.21
Assim visto, em conclusão narrativa, sociedade e sócios podem ressponder pelo uso abusivo, fraudulento ou simulado da sociedade, direta e inversamente, ora atingindo os bens sociais, ora responsabilizando os sócios e até a sociedade, quando se tratar de utilizá-la abusivamente, no maldoso afã de fugir escancaradamente ao dever pessoal de alimentação.
6. O PROCESSO JUDICIAL DE SEPARAÇÃO
Evidentemente que numa ação de separação judicial, de dissolução de união estável e mesmo de divórcio direto, quando ausente qualquer consenso na composição amigável da liça, é preciso recorrer ao processo litigioso. Dependendo do caso concreto, quando ainda recente o rompimento da união, e os fatos demonstram que os litigantes ainda estão nitidamente vinculados a suas mútuas, recíprocas e subjetivas expectativas, a demanda litigiosa conterá uma carga menor de tolerância e um processo muito latente de culpabilização, como eterno bode expiatório da patologia familiar.
Precedendo separação fatual de tempo inferior a um ano, a lei divorcista reclama para as pessoas legitimamente casadas a pesquisa da culpa pela separação, para que o julgador possa atribuir responsabilidades ao cônjuge que teria faltado com deveres do matrimônio ou agido em conduta desabonatória da moral conjugal de seu consorte, basicamente, não preservando o dever de respeito e de estima aguardados como indissociáveis normas éticas de trajetória nupcial.
A discussão da culpa na ação de dissolução da união estável é bastante controvertida na doutrina brasileira, pendendo opiniões que a julgam obrigatoriamente presente no processo litigioso, mercê dos direitos e deveres previstos em lei para os conviventes22 e com reflexos no direito aos alimentos. Acrescem, ainda, que não examinar a culpabilidade no concubinato é privilegiar este instituto diante do casamento.
Feitas estas ponderações, importa apenas inferir que a ação litigiosa de separação de cônjuges ou concubinos, quando ainda aceitável discutir as causas de ruptura do relacionamento afetivo, aceita trazer por argumento complementar de responsabilização toda e qualquer atitude do parceiro que se vale da máscara societária para desviar da divisão os bens considerados comuns, numa tentativa que deve ser rechaçada com o uso episódico da teoria da despersonalização da pessoa jurídica, já que esta tentativa de dilapidação da meação do outro parceiro configura inequívoca conduta desonrosa.
Desta sorte, ao lado de qualquer causa usual de separação, quer decorra ela de infração aos deveres do casamento, como são exemplos o adultério, a maliciosa deserção do lar ou o abandono material, quer deflua de alguma das múltiplas configurações subjetivas da conduta desonrosa, a este elenco agrega o uso fraudulento ou abusivo da máscara societária, em prejuízo da meação do cônjuge ou do concubino inocente.
Em suma, como já referi noutro texto de doutrina,23 o ato lesivo praticado sob o manto da pessoa jurídica servirá como causa isolada ou suplementar do próprio pleito separatório, pela via expressa da conduta desonrosa, claramente identificada na ilícita e desonesta atitude do esposo que se vale da pessoa jurídica para o desvio sorrateiro da meação de seu par.
Trata-se, portanto, de verificar se o Juiz da separação irá gerar sentença judicial que enfoque como motivação de decidir não somente os efeitos patrimoniais resultantes de aplicação da teoria da desconsideração, mas também o ato dilapidatório denunciado, como causa isolada ou complementar de culpa pela falência da relação. No entanto, como causa subjetiva para caracterização da culpa, só poderá ser admitida se a demanda de separação litigiosa for promovida em tempo inferior a um ano de fática ruptura da convivência, pois que depois deste espaço de tempo só será possível apreciar alguma razão objetiva da separação, vinculada unicamente, no decurso de tempo.
Este mesmo raciocínio pode ser espelhado em uma ação de separação judicial promovida contra um cônjuge porque, por exemplo, ele acusou falsa e publicamente sua esposa de haver praticado adultério, ou de ter mantido relações homossexuais, tudo disseminado com o único intuito de ofendê-la moralmente.
Sendo proposta a ação judicial separatória antes de um ano, termo final para o enfrentamento processual da culpa, o cônjuge ofendido terá uma motivação causal do seu pleito separatório, que são as ofensas morais expendidas, ou poderá ter uma pluralidade de causas, acaso existam outras infrações cometidas pelo ensandecido esposo, mas, sobretudo, também por estes mesmos fatos, poderá exercer uma pluralidade de pedidos, ao cumular a separação judicial com a condenação pecuniária do esposo ofensor em danos morais.24
Assim visto, culpa e pedido sempre caminham juntos no Direito de Família brasileiro, permitindo no tempo previsto de um ano de fatual separação o exame da causa de separação e o seu reflexo patrimonial, porquanto os interesses econômicos são protegidos por disposições normativas aplicáveis à sociedade conjugal e também ao concubinato. Contudo, passado um ano de consecutiva ruptura da vida em comum,25 desimporta ao processo ir à cata do cônjuge responsável por esta mesma ruptura informal.
Neste conjunto de relações afetivas, quando desfeitas, sempre e sem prazo de prescrição ou de preclusão,26 pois que respeita à meação, a sentença judicial deve alcançar a teoria da despersonalização da pessoa jurídica, como instrumento de invulgar eficácia para coatar a velha prática de fraude à meação, quando subvertida a função da sociedade comercial.27
7. A EFETIVAÇÃO DA DISREGARD NA SEPARAÇÃO JUDICIAL
Em antigo aresto relatado o então Desembargador Athos Gusmão Carneiro28 constatava existir verdadeiro abuso quando se trata, com a ajuda da pessoa jurídica, de burlar a lei, violar obrigações contratuais ou prejudicar fraudulentamente terceiros. Sugeria, com seu voto, acolhido à unanimidade, fosse aplicada a teoria da desconsideração para atingir com a penhora os bens da sociedade, por dívida do sócio que, devendo, se ocultava por detrás da cortina societária.
Estranhamente, este tabu seguia no âmbito processual do Direito de Família, permanecendo inermes os seus operadores, que, praticamente prostrados, simplesmente assistiam esposos servindo-se da forma societária em seu próprio e único benefício, com extremos clássicos citados por Zannoni,29 nos quais a habitação conjugal e o automóvel particular da esposa eram de propriedade da sociedade, que permitia o seu uso gratuito a título de comodato, cujo termo final sempre coincidia com a vontade unilateral de separação, manifestada pela esposa comodatária da empresa.
Dobson30 toca na espinha dorsal das relações sociais, que resultaram na criação da doutrina da disregard, ao referir que elas nascem da fidúcia, a qual deve existir em todas as relações humanas, como acontece entre marido e mulher, pais e filhos, sendo que, nestas relações, nenhuma das partes deve exercer pressões ou influências, nem obter ganhos indevidos, realizando transações que importem numa vantagem e correlato prejuízo, nem se conduzir de outra maneira que não seja com a mais absoluta boa-fé, fazendo conhecer a outra parte todos os detalhes da transação. É que neste âmbito a astúcia comercial, a ganância e o desafio de qualquer natureza se acham proibidos, já que estão totalmente afastados por esse especial vínculo interno de confiança que não admite qualquer vantagem.
E quando a confiança genérica a todas as relações humanas é fraudada, lembra Suzy Koury,31 não fica comprometida a segurança e nem a justiça, pelo fato de ficar a cargo dos juízes e dos tribunais o exame das circunstâncias do caso concreto para a aplicação da desconsideração.
Na doutrina brasileira, em obra das mais recentes, escreve Bittar32 que a aplicação da disregard busca elidir fraudes e deveres contratuais, em que por meio de subterfúgios, ou de expedientes maliciosos e, portanto, ilegítimos, é colhida vantagem indevida para si ou para outrem, com o aproveitamento irregular da personalidade social.
Sensível a observação de Fábio Ulhoa Coelho,33 de que não é exigida a intenção deliberada de causar prejuízo, bastando que se tenha consciência de produzir dano. Por evidente, todo dano, mormente causado à meação, importa na sua reparação; como claramente acentua Marçal Justen Filho,34 esse mesmo dano é afastado pela teoria do superamento da pessoa jurídica.
Os meios engendrados para prejudicar a meação conjugal, atualmente inclusa a metade concubinária, seguem sendo os mais engenhosos possíveis. Ilustra uma destas hipóteses que coloca em perigo iminente a porção conjugal e altera ilegalmente o regime de bens em relação à esposa o expediente da aparente transferência da totalidade das quotas sociais detidas pelo varão em determinada sociedade comercial, sendo esta, por seu turno, titular do acervo de bens conjugais.
Ainda que esta alteração contratual idealizada para privar a mulher do exercício de seus direitos sobre os bens comunicáveis seja perfeita quanto ao seu fundo e à sua forma, por ter atendido às condições de existência e validade e obedecido às regras de publicidade, ainda assim o ato é ineficaz em respeito ao cônjuge ou concubino lesado, porque foi o meio ilícito exatamente usado em detrimento dos legítimos direitos de partição patrimonial.
Diante deste quadro de indisfarçável ilicitude, comete ao decisor simplesmente desconsiderar na fundamentação de sua sentença judicial, vertida no ventre do próprio processo de separação ou de dissolução de união estável. As alterações contratuais que cuidaram de transferir ou reduzir a participação social do cônjuge empresário são ignoradas pelo julgador, que as desconsidera no âmbito de sua sentença judicial e computa para a partilha conjugal a participação social preexistente à fraudulenta subcapitalização das quotas sociais, repondo-as ao estado anterior ao da flagrante usurpação da meação do cônjuge espoliado.
Assim foi decidido, por exemplo, na separação judicial litigiosa de número 01291074842, na 7ª Vara de Família e Sucessões de Porto Alegre, em que o Magistrado singular deliberou por assegurar a meação da autora, inclusive sobre as quotas sociais fraudulentamente doadas pelo demandado 35
Tratava-se de uma ação de separação judicial litigiosa cumulada com vários pedidos pertinentes às relações conjugais em estágio de dissolução, em que, às vésperas36 de desertar do lar, deixando a esposa gravemente enferma, com invulgar insensibilidade cuidou o varão de se afastar da sociedade de engenharia da qual era sócio com outros familiares, sendo a empresa a dona dos principais bens usados pelos separandos, à exceção da vivenda conjugal.
A inicial requeria oportuna auditoria que fosse capaz de promover o exato levantamento patrimonial societário, reconstruindo o seu correspondente lastro patrimonial existente às vésperas do malicioso abandono arquitetado e posto em prática pelo marido, sendo reposta a igualitária partilha com suporte na teoria da disregard.
Claro está que o acolhimento da teoria da superação da personalidade jurídica também poderia levar à alternativa sentencial da compensação de bens, em que o montante desviado com o mau uso da personalidade jurídica, depois de minuciosamente apurado em criteriosa avaliação judicial, restaria recompensado pela entrega ao cônjuge prejudicado de outros bens ainda constantes da massa conjugal, até o montante da indenização.
A propósito do assunto, o articulista J A. Penalva Santos37 observa que, ao levantar o véu da personalidade da sociedade, pode ser trazido de volta o bem desviado ou direito ao patrimônio lesado, e complementa: "Não importa tenha o bem, depois, entrado no giro dos negócios; o importante é a prova do seu ingresso: na falta de bens, restitui-se o equivalente com perdas e danos."
Registram os anais forenses uma situação fática em que o marido era sócio de uma empresa intitulada R.E.I. Ltda., destinada a atuar no ramo imobiliário da construção civil, incorporação e compra e venda de imóveis. Em nome desta sociedade mercantil estava sendo construído um edifício com inúmeros apartamentos e lojas comerciais. Planejando a sua separação, o marido contratou, com o auxílio de dois presta-nomes, e aliado ao seu próprio irmão, a sua aparente retirada da sociedade comercial. Já disfarçado de ex-sócio da RE.I. Ltda., promoveu a sua separação judicial e, antes de transformá-la em divórcio, realizou nova alteração contratual em que retorna à primitiva sociedade, com a mesma quantidade de quotas de origem, num notório manejo fraudulento à meação da ex-esposa, mediante um jogo de fria troca de titularidade das quotas.
Não fosse pela aplicação episódica da desconsideração da personalidade jurídica, todo este arranjo fraudulento certamente precisaria passar por complicadas ações anulatórias, envolvendo num litisconsórcio indesvendável38 a mulher lesada em sua meação, o seu ex-marido, o irmão deste, a empresa e os seus sócios fictícios.
Nesta demanda distribuída como de indenização, a ex-mulher requeria, com fundamentação na declaração judicial e incidental de inoponibilidade de efeitos ao jogo societário articulado em seu prejuízo, que fosse indenizada, mediante oportuno periciamento procedido em liquidação de sentença, pelos danos emergentes e lucros cessantes causados pela dolosa transferência em fraude à sua meação das quotas sociais da empresa conjugal.
Noutra situação processual, com uma planejada antecedência à separação judicial, quando já visíveis os sinais exteriores de rompimento afetivo, o varão constituiu, com os seus habituais sócios das demais empresas de que participava, uma holding denominada BDMP Ltda. Quando aforada a separação amistosa, ingressaram na partilha alguns bens registrados na pessoa física do casal e somente a holding BDMP Ltda., para cuja sociedade verteu todas as demais empresas e acresceu cláusula contratual que dispensava a outorga da sócia. Mesmo antes de concluída a partilha, a separanda já não mais detinha qualquer bem conjugal, salvo alguns hauridos com a separação, do acervo conjugal como pessoa física.
A ação proposta propugnava, com escora na teoria da disregard, a ineficácia episódica39 dos atos cometidos em fraude à real meação da demandante e buscava responsabilizar o aforado pelo ressarcimento destes danos, respondendo ele com os bens liminarmente postos em indisponibilidade, em pedido cautelar incidental cumulativo,40 até o montante da sua efetiva meação, mais perdas e danos, sem que o ato jurídico implicasse dissolver a sociedade.
Abreviava-se, ademais, toda uma complicada teia processual que buscasse anular alterações contratuais da empresa, correndo riscos de improvimento liminar do pedido por ilegitimidade de parte, pois esposa de sócio não é parte legítima ad causam para anular em juízo contrato de sociedade comercial, conforme já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, na Ap. Civ. 193.875-2/4, por sua 18ª Câmara Cível.41
8. A EFETIVAÇÃO DA DISREGARD NA DISSOLUÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL
Tudo até agora articulado em relação à desconsideração da pessoa jurídica, com a sua aplicação no processo de separação judicial, pelas ponderações já anteriormente traduzidas, resulta, conseqüentemente, também aplicável à união considerada efetivamente estável e, portanto, comparável ao casamento civil.
No Ag. Ins 593074602 da 7ª Câmara Cível, sendo Relator o então Desembargador Paulo Heerdt, foi desconsiderada a personalidade jurídica de sociedade formada por dois sócios, concubinos casados pelo religioso, rejeitado pedido de liminar em embargos de terceiro promovidos pela sociedade que visava obstar arrolamento de bens promovido pela mulher. O aresto concluía existir a possibilidade de fraude do varão, ocultado sob o manto da pessoa jurídica.
Pode também ser vislumbrada situação fática de concubinos, em que depois de quase dois lustros de estável coabitação, o varão vem a falecer, deixando todos os bens pertencentes ao acervo concubinário em nome de uma empresa de transportes que havia constituído ainda na constância de seu primeiro matrimônio.
Refeita da fatalidade do decesso de seu parceiro, depara a companheira com a realidade, nunca antes atentada, de que a sua moradia, o carro de uso dos concubinos e até a vivenda praiana estavam registrados em nome daquela apresta sociedade comercial.
Valendo-se desta particularidade, a primitiva esposa, da qual o varão estava fática e conclusivamente separado, e seus filhos conjugais promoveram manu militari o rápido e arbitrário desapossamento da concubina daqueles bens que de longa data estavam sob a sua posse, prevalecendo-se a esposa e os seus filhos herdeiros do fato de estes bens constarem em nome da pessoa jurídica.
Mantida na posse dos bens concubinários através de demanda possessória com pleito de liminar, seguramente esta ação precisou discorrer acerca da desconsideração da personalidade jurídica. Assim se deu porque, para fugir da legislação que atualmente ordena a partilha dos bens adquiridos na constância da estável união de fato, o companheiro valeu-se em vida da pessoa jurídica como porto seguro de incomunicabilidade dos bens. Com este esquema coube à companheira pleitear a partilha do crescimento da sociedade comercial, a contar do início de seu concubinato, sob pena de a sua inércia processual autorizar à primitiva esposa e aos filhos do casamento enriquecerem ilicitamente, pois todos acabariam invadindo a meação da concubina, que nada receberia, em razão de os bens amealhados durante a convivência estável constarem como sendo de propriedade da pessoa jurídica.
9. A DISREGARD NA MEDIDA CAUTELAR
Enquadrando sob o nome genérico de tutelas de urgência pertinentes ao Direito de Família, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira42 acrescenta que a sensibilidade dos valores jurídicos e emocionais do relacionamento humano exige no plano processual uma pronta resposta da jurisdição.
Com efeito, na seara do Direito de Família a paz e a segurança familiar já não mais podem ser abaladas pela sacralização da pessoa jurídica, assistindo todos imóveis ao sepultamento, pela fraude, pelo abuso de direito ou pela simulação perpetrados em nome do ente moral, de direitos e bens que têm real origem no casamento ou na união estável e que devem ser preservados pelas diversas medidas cautelares postas a serviço do jurisdicionado.
Dentre as cautelas de uso corrente, está a figura do arrolamento judicial de bens, definida por Cláudio Pedrassi43 como "cautelar nominada, constritiva, antecedente ou incidente, destinada a obter tutela jurisdicional cautelar para garantir e assegurar bens, a priori indeterminados, sobre os quais se tem interesse, não como mera garantia de crédito, mas sim como patrimônio sobre o qual se tem direito constituído ou a constituir (...)".
O auto de arrolamento atua como se estivesse retratando os bens para a sua futura partilha, permitindo uma noção bastante exata dos bens reputados comuns ao casamento e que ficam sob a guarda de um fiel depositário.
Só que sem o auxílio da doutrina da superação da personalidade jurídica, posta para negar o absolutismo da autonomia patrimonial da pessoa jurídica,44 a sociedade servia como adequado instrumento e um porto altamente seguro para aquele sócio que dela se valia em desacordo com o seu objeto social, apenas para auferir proveito pessoal pela fraude ou exorbitando de seus direitos.
Vertidos bens conjugais para a sociedade comercial da qual participa o marido ou o concubino, estava o esposo numa situação confortável, agindo na certeza da impunidade, já que a lei não o apanhava. Nestas condições adversas, o germe da dilapidação patrimonial atuava com muito mais desenvoltura, já que o sócio cônjuge perpetrava o esvaziamento do acervo conjugal, protegido que estava pelo anteparo da pessoa jurídica.
Assim, mesmo diante destes indícios tão sérios e gritantes de burla à meação, fingidas transferências nem sequer podiam ser detidas porque executadas por terceiro que se escondia sob o véu societário, e inepta qualquer proteção cautelar.
A tão-só desconsideração da personalidade jurídica pode dar manejo expedito e eficaz para garantir a intangibilidade da verdadeira meação, inclusive com o arrolamento judicial dos bens existentes em nome da pessoa jurídica que vem sendo usada como instrumento da fraude.
Não importa que se trate de concubinato, conforme já decidido pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no Ag. Ins. 59307460245 ou de casamento, conforme decidido no Mandado de Segurança 593116601, de 23 de junho de 1994, da 8ª Câmara Cível, em que foram impetrantes R.E. Ltda. e G. Sociedade Anônima Construções e Incorporações, em cuja demanda originária o Juiz singular deferiu a averbação da ação de separação judicial litigiosa nos Ofícios de Imóveis, à margem de todos os bens registrados em nome das empresas construtoras.46
Enfim, é como esclarece Luiz Guilherme Marinoni47 ao escrever que não deve ser confundida a tutela jurisdicional com a sentença, "porque a diversidade das situações de direito substancial exige que sejam predispostos meios de tutela adequados a essas diferentes realidades".
Deste modo, a tutela cautelar trará, com efeito, resultado útil ao processo, evitando e acautelando a triste constatação, em sentido contrário, de que empresa e cônjuge-sócio só se serviram mutuamente para lucrar com a separação, enquanto ingenuamente negadas tutelas jurisdicionais que seriam capazes de preservar o resultado útil de uma extenuante demanda que cuida de selar a ruptura judicial de uma união de duas pessoas que já não mais se entendem.
10. A DISREGARD E A DIVISÃO DE QUOTAS SOCIAIS
Conforme tem sido mostrado ao longo deste estudo acerca da teoria da desestimação da personalidade social, a sua aplicação processual pode resultar em inúmeros efeitos, como a ordem judicial de retorno ao acervo conjugal dos bens passados fraudulentamente para a sociedade comercial, desconsiderando a sua transferência para a sociedade e ordenando a sua integral partilha.
Existindo outros bens no acervo do casal, a sentença judicial pode ordenar a sua mera compensação em prol do cônjuge ou companheiro prejudicado, até o montante da massa de bens desviados com o uso da máscara societária. Como também a decisão pode ser orientada pela simples e episódica desconsideração de qualquer alteração contratual que tenha sido utilizada para reduzir a participação societária do cônjuge e, deste modo, buscado excluir maliciosamente da partilha a empresa e o seu correspondente lastro patrimonial, porquanto ao esvaziar suas quotas o consorte empresário esvazia a participação conjugal no capital da sociedade mercantil.
Igualmente o decisor judicial que examina o processo de separação ou de dissolução da relação afetiva do casal pode simplesmente ignorar qualquer transação que simule a retirada de um sócio meramente conivente, cuja participação na empresa estaria sendo justamente paga com expressivos bens da sociedade, num notório ajuste concertado em fraude exclusiva à meação da mulher de um dos sócios remanescentes e que enfrenta a sua separação em juízo, ou está em vésperas de promovê-la.
Entretanto, tudo o que o Juiz do processo de separação judicial ou de dissolução do concubinato não pode ordenar é a correlata dissolução da sociedade comercial para efeitos de partilha, e nem mesmo a inclusão do cônjuge ou companheiro prejudicado como sócio da empresa.
Cristiano Graeff Jr.48 está entre os poucos doutrinadores que enfrentam a matéria, ao explicar que no decorrer da sociedade o sócio sujeita-se às condições do respectivo contrato social, que o status de sócio é conferido ao cônjuge admitido pela sociedade e que este caráter personalíssimo não se comunica ao seu cônjuge ou ao companheiro em razão da affectio maritallis ou por conseqüência do regime de bens. A apuração do valor das quotas só terá lugar na dissociação parcial ou total da sociedade mercantil.
Em complemento, aduz Graeff49 que a dissolução exige hipótese taxativamente enumerada na lei ou no contrato, sendo vedado, Fora destas hipóteses, que o cônjuge ou o companheiro dissolva a sociedade comercial em execução de partilha, mesmo depois de haver recuperado com a aplicação da teoria da despersonalização da sociedade jurídica a quota social que o seu parceiro tentou dissipar, escondido atrás do biombo do absolutismo da personalidade jurídica.
É a orientação colhida dos artigos 334 do Código Comercial e 1.388 do Código Civil.50 A meeira passaria a ostentar a condição de sócia do sócio, na divisão das quotas deste último, ficando ambos em condomínio de quotas, sem que, com isso, ela tenha alguma ingerência sobre a pessoa jurídica.
É como sustentou o Juiz da Vara de Família em Criciúma, Santa Catarina, Dr. Jorge Luís Costa Beber, na sentença por ele proferida na ação de partilha nº 020.98.003319.5, ao concluir ser "indisfarçável que a partilha decorrente do regime de bens não poderá interferir na esfera jurídica de terceiros, sendo ilegal compelir os demais sócios a aceitar seu ex-cônjuge como sócia, o que seria efetuado através da simples transferência de quotas".51 E concluiu por declarar os litigantes da ação conjugal de partilha de bem societário como condôminos, em partes iguais, das quotas sociais cujo titular era o varão, sem que a sua decisão pudesse gerar efeitos perante a sociedade, valendo tão-somente como uma subsociedade do quinhão societário do marido.
Neste quadro dos fatos, comete ao subsócio promover posteriormente, no juízo do cível e do comércio, a venda da sua quota condominial, gozando enquanto não extinto o condomínio do rateio dos lucros que porventura resultarem da participação do sócio real, seu ex-cônjuge ou ex-companheiro.
Este é o mesmo entendimento colacionado por Eduardo Vaz Ferreira,52 ao reconhecer o caráter personalíssimo do cônjuge que integra uma sociedade comercial, conservando ele o título de sócio com todas as prerrogativas inerentes a tal título, de modo que nem a separação judicial e nem a partilha dos bens repercute no funcionamento da sociedade. No entanto, Ferreira sugere que na divisão judicial dos bens se promova a compensação, adjudicando ao sócio as quotas, exatamente em virtude desta qualidade pessoal da participação social. Esta orientação vem ao encontro justamente do propósito compensatório que amiúde se faz possível pela aplicação judicial da disregard, sempre que existirem outros bens que, presentes no patrimônio conjugal, permitam sejam compensados em Favor do parceiro prejudicado pelo mau uso da personalidade societária.
11. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO ÂMBITO DOS ALIMENTOS
Com singular precisão, escreveu Rolf Serick, citado por Fassi e Bossert,53 que a sociedade jurídica não se identifica com os homens que se acham por detrás dela. Prosseguem estes autores, em lapidar arremate, dizendo que respeitar dogmaticamente a personalidade do ente social poderia em muitos casos levar a convalidar atos que o direito não pode respeitar sem desmentir os seus próprios fins.
Penso que é no âmbito dos alimentos judicialmente requisitados que ocorrem, por certo, com maior e mais inquietante freqüência, os atos que procuram dissimular pela via societária a verdadeira capacidade econômica e financeira da pessoa física que tem um dever legal de alimentos.
Por oportuno, asseveram Caimmi e Desimone54 estar convencidos de que os mecanismos de penetração das formas jurídicas são perfeitamente aplicáveis aos casos de insolvência alimentar fraudulenta. Entendo, entretanto, que a disregard não só deve servir aos casos de insolvência alimentícia fraudulenta, mas, também, ao seu arbitramento no processo ordinário de conhecimento, assim como em relação à sua execução judicial.
Não há como esquecer, na diuturna prática forense, que os alimentos usualmente restam estipulados em juízo com a útil escora na conhecida teoria da aparência, sempre que o alimentante, sendo empresário, profissional liberal ou autônomo, e até mesmo quando se apresente supostamente desempregado, circule ostentando riqueza incompatível com a sua alegada carestia.
É que configura prova praticamente impossível aferir a exata dimensão dos regulares e periódicos ingressos financeiros dos alimentantes que não são empregados e, sobre a base dos seus ganhos, calcular ajusta soma do abono alimentar. A única modalidade deste arbitramento judicial está no ato de o julgador coletar elementos probatórios de convicção pessoal, sustentados na envergadura do patrimônio do obrigado alimentar.
Portanto, o acesso de convencimento judicial da capacidade alimentária acaba buscando parâmetros no cabedal de bens do alimentante, mais apropriadamente nos indícios e nas presunções da riqueza por ele exteriorizada, tudo vinculado ao seu modo de viver e à atividade singular ou plural que ele desenvolve.
No trato processual dos alimentos a pesquisa destes ingressos tem sido costumeiramente dificultada pelo alimentante quando ele é sócio de alguma empresa e aproveita-se desse fato para agir escondido sob o véu empresarial, mantendo vida e atividade notoriamente faustas, em contraponto ao seu miserável estado de quase indigência, considerando os parcos rendimentos que a sociedade lhe alcança como pro labore, isso quando ele não se retira ficticiamente da sociedade, embora siga nela atuando na suposta condição de preposto.
Teresa Arruda Alvim Wambier55 apanha muito bem a matéria atinente à tutela da aparência e encontra na teoria da desconsideração da pessoa jurídica uma justa solução de resolução do litígio alimentar, naquelas situações em que o ex-marido (e vale para o ex-companheiro e pai) hesita em prestar alimentos aos seus dependentes, alegando que tem baixos rendimentos, enquanto transita publicamente soberbo, se não exteriorizando o luxo com excessos, ao menos mostrando que não se priva de um padrão social diferenciado, num demonstrar diário que caminha na contramão de sua postura processual.
Na Ap. Civ. 597135730, da 7ª Câmara Cível do TJRS, foram mantidos alimentos provisionais de 12 salários mínimos para a esposa, mais despesas de moradia e saúde, valendo-se da aparência de riqueza externada antes do processo fático de separação56 e destacando a forma fraudulenta com que o marido, já visualizando a separação do casal, "doou" a sua participação societária na R. Engenharia ao seu pai, numa intenção inequívoca de impossibilitar qualquer pensionamento digno à ex-esposa.
Ao lado de configurar uma odiosa postura criminal de abandono material o uso abusivo, simulado ou fraudulento da pessoa jurídica no intuito de negar os adequados alimentos, uma visão mais atualizada do direito mostra ser possível, inclusive, responsabilizar criminalmente a pessoa jurídica.
No âmbito dos alimentos, a empresa que empresta o seu véu ao sócio que almeja burlar a sua dívida alimentar57 não deve ficar impune ao artifício ilícito, como ocorreu na separação judicial litigiosa nº 01291069282, que tramitou pela 1ª Vara de Família e Sucessões de Porto Alegre, na qual o Juiz monocrático entendeu que a empresa deveria ser responsabilizada pela pensão arbitrada, já que detrás dela o alimentante se escondia. Conforme referi noutro trabalho,58 naquele processo a prova demonstrou que o réu continuava à testa da sociedade, nela comparecendo e deliberando diariamente, não obstante em seus contratos de alteração social houvesse sido articulada artificiosamente a sua simbólica retirada.
Em síntese, visa a disregard coibir em derradeiro estas equivocadas e acanhadas decisões judiciais59 que teimam em decantar a autonomia patrimonial da personalidade jurídica, mesmo diante de contundentes evidências que cuidam de exteriorizar escancaradamente a riqueza do devedor alimentar.
Quando um alimentante compra e usa bens em nome de seus parentes, o decisor, já calejado com tão batidos estratagemas, não demanda qualquer dificuldade em quantificar a pensão com suporte nesta magnanimidade abusivamente ostentada. No mesmo diapasão, afigura-se desconcertante e delicadamente injusto tolerar que o decisor articule postura distinta, apenas porque no lugar do parente é a empresa que assume esse posto de presta-nome.
Perante esses conhecidos indícios, soa covarde que decisões prossigam protegendo o sigilo e a suposta individualidade patrimonial da personalidade jurídica, nas mais diversificadas hipóteses, que vão desde o simples indeferimento do pedido de ofício solicitando que venham aos autos as contas bancárias exploradas pela empresa da qual o devedor de alimentos é o principal sócio,60 passando, inclusive, pelo indeferimento de perícia contábil na escrita da empresa, com vistas ao levantamento dos ganhos hauridos pelo sócio devedor alimentar.
12. DISREGARD E PERÍCIA CONTÁBIL
Incrivelmente, ainda existem decisões judiciais controversas acerca da admissão para a realização de perícia contábil em sociedade comercial, visando a apuração de ganhos de sócio devedor de alimentos.
Agravo de instrumento interposto contra decisão singular proferida em ação de alimentos que deferira prova contábil em empresa da qual o agravante fora diretor mereceu provimento perante a 3ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,61 que julgou inadmissível sujeitar à perícia contábil uma empresa estranha à demanda alimentar.
É de outro lado a lição sustentada por Cristiano Graeff Jr.,62 ao invocar o rigor da Súmula 260, do Supremo Tribunal Federal,63 que limita o exame de livros comerciais em ação judicial às transações entre os litigantes.
De qualquer modo, tem prevalecido o bom senso, como adverte Teresa Arruda Alvim Wambier,64 ao lembrar que "não afronta a regra do sigilo comercial permitir-se o exame pericial de livros contábeis da empresa, em caso de separação judicial, para fins de partilha. Prevalece sobre esta regra a obrigação de colaborar com o Poder Judiciário, na investigação da verdade".
Embora siga sendo claramente privilegiada a completa separação entre pessoa física do sócio e pessoa jurídica da sociedade da qual ele participa, Yussef Said Cahali65 defende a tese da perícia contábil em sociedade comercial da qual o cônjuge participa como sócio ou diretor, especificamente com o objetivo de apuração da sua capacidade contributiva, excluída qualquer outra perquirição investigatória concernente a outros assuntos, em relação aos quais, complementa Cahali, preserva-se o sigilo da atividade empresarial.
Tenho que se deva ir adiante com o princípio absoluto de colaboração para com o Poder Judiciário na busca da verdade e do sigilo da atividade comercial, sempre que restar patente que o instituto da personalidade jurídica está sendo empregado para fins condenáveis pelo Direito e pela moral, agindo na contramão do seu fim social e, assim, causando irreversíveis danos ao parceiro.
Há limites de ética processual a serem rigidamente observados quando o Juiz verifica que o cônjuge ou companheiro empresário conduz-se apenas por sua ira amorosa, valendo-se da máscara societária como útil e sacro instrumento na injusta obtenção de resultados materiais que visam o seu único e ilícito proveito.
Na procura do justo, são inadmissíveis, sob qualquer pretexto, artifícios ou simulacros tendentes a fraudar partilha ou sonegar criminosamente a adequada alimentação essencial à sobrevivência de pessoas dependentes. É ato de nenhuma suportabilidade, e que ética alguma justifica respeitar, invocar a distinção de personalidades em nome de inúteis conceitos de ordem meramente processual, idealizados para outra classe de litígio. Não podem ser aceitos esses princípios quando, à vista das evidências, terceiros são espoliados e prejudicados com o uso ilegal e abusivo da personalidade jurídica, que tem servido, com preocupante frequência no Direito de Família, como instrumento à causa do logrante litigante, o qual se movimenta ágil e impune, por detrás da sociedade mercantil que pôs a seu exclusivo serviço.
Destarte, em perícia que venha a ser ordenada numa ação judicial de dissolução de casamento ou concubinato, e que por hipótese também agregue pedido inicial de arbitramento de alimentos, presentes as suspeitas do parceiro-sócio estar se valendo da sociedade mercantil em disfunção das finalidades da empresa, com efeito que o Juiz da demanda, e desde que provocado por específico pedido contido na inicial, deverá encaminhar o processo para uma suspensão episódica do princípio da separação entre pessoa jurídica e pessoa física - membro desta mesma sociedade.
Portanto, a perícia poderá não apenas ser contábil, para apuro de valores da efetiva capacidade pensional, como também poderá implicar pesquisa e avaliação do acervo patrimonial da empresa, buscando apurar esmiuçadamente a dolosa transferência de bens, quotas e alternância de sócios, tudo num jogo claramente ensaiado para perpetrar induvidosa fraude à meação do cônjuge e aos alimentos de seus dependentes.
Talvez apenas seja necessário o auxílio de um perito engenheiro, ou arquiteto, com competência para a avaliação patrimonial, logicamente auxiliado pela pesquisa contábil.
13. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA EXECUÇÃO DE ALIMENTOS
Antigo tormento adicional surgia na mais dramática de todas as demandas, quando depois de judicialmente estipulada a pensão alimentar, o alimentante transferia suas quotas sociais para parentes, simulando seu afastamento da sociedade, embora prosseguisse à testa da direção da empresa, atuando com procuração.
Outro expediente de uso rotineiro consiste em esquivar-se do pagamento da dívida alimentar, escudado na circunstância de a pessoa jurídica possuir bens, enquanto o seu sócio, devedor dos alimentos, vive numa completa indigência.
É oportuno recordar que a teoria da despersonalização da personalidade jurídica há muito deixou de ser mero dogma importado do Direito estrangeiro, já estando inserido em importantes leis brasileiras, como são exemplos o artigo 28 da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor e o artigo 18 da Lei 8.884, de 11 de junho de 1994, a Lei Antitruste, isso sem deslembrar o artigo 2°, § 2°, da CLT, e os artigos 133, inciso II, 134, inciso VIII, e 135 do Código Tributário Nacional.
Além disso, o Novo Código Civil acena em seu artigo 5066 com a introdução, em seu texto, do princípio da desconsideração da pessoa jurídica. Assim pode ser logo vislumbrado que o princípio da desconsideração da personalidade jurídica está inteiramente integrado ao texto legal brasileiro, e embora debute oficialmente na nova codificação civil, de muito tempo já vinha sendo amplamente acolhido em diversas áreas do Direito brasileiro.
Bem vista a jurisprudência nacional na execução de créditos, em que a disregard vem mantendo larga aplicação, tanto direta como inversamente, nesta última, quando se trata de penhorar bens pessoais dos sócios por dívidas da sociedade.67
Sobre a responsabilidade dos sócios por dívidas da sociedade, em alentado artigo doutrinário, Raimundo Carvalho68 entende ser de menor importância perquirir a base legal para a aplicação da doutrina da desconsideração da pessoa jurídica, pois que se trata de tese largamente difundida na jurisprudência e doutrina brasileiras, e que só tem sido paulatinamente acolhida na legislação pátria.
O ilustre Magistrado Jorge Luis Costa Beber,69 estudioso da disregard ao explanar acerca da aplicação direta da disregard na execução alimentar, não encontra qualquer óbice para a sua aplicação na seara familiar, e acrescenta:
"Em especial no tocante aos alimentos, estimo ser perfeitamente viável o uso da teoria ora em exame, tanto na fase de cognição, como na execução, sobretudo nesta última, já que a constrição de bens para satisfação do débito alimentar se impõe cada vez mais como medida necessária e imprescindível, fruto do entendimento jurisprudencial vigente, contra o qual mantenho reservas pessoais, que limita a utilização da modalidade executiva prevista pelo artigo 733 do CPC."
Foi exatamente a decisão tomada por unanimidade na Ap. Civ. 598082162, da 7ª Câmara Cível do TJRS, sendo Relatora a Desembargadora Maria Berenice Dias.70
No seio do acórdão argumenta a Relatora Desembargadora Maria Berenice Dias:
"A conveniência de sua utilização no âmbito do Direito de Família já foi abordada por Rolf Madaleno, em seu artigo intitulado A disregard no Direito de Família, publicado na Revista Ajuris 57/57-66: O usual, dentro da teoria da despersonalização, é equiparar o sócio à sociedade e que dentro dela se esconde, para desconsiderar seu ato ou negócio fraudulento ou abusivo e, destarte, alcançar seu patrimônio pessoal, por obrigação da sociedade. Já no Direito de Família sua utilização dar-se-á de hábito, na via inversa, desconsiderando o ato, para alcançar bem da sociedade, para pagamento do cônjuge ou credor familial, principalmente frente à diuturna constatação nas disputas matrimoniais, de o cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, senão todo, ao menos o rol mais significativo dos bens comuns."
E nesta altura dos acontecimentos, já teríamos de ter aprendido que a elevada responsabilidade alimentar, que diz respeito à própria vida do credor, não pode ser barrada pelo singelo gesto de cerrar a porta da personalidade jurídica, como se fosse um território de completa imunidade judicial.
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NOTAS
1. SPOTA Alberto G. Tratado de derecho civil: derecho de família. Buenos Aires: Depalma, 1988, t. II, v. 3, p. 7/8.
2. Artigo 267 do Código Civil e artigo 2° da Lei 6.515/77.
3. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 7. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991, v. V, p. 116.
4. Tanto guarda este propósito protetivo em relação à mulher, considerada, à época, o ente mais frágil do casamento, que João Andrades Carvalho, na sua obra Regime de bens (Rio de Janeiro: Aide, 1996, p. 27), consigna fincar-se o princípio da imutabilidade na segurança, garantia e certeza de que a sociedade conjugal não é um sumidouro de direitos patrimoniais.
5. Ver MADALENO, Rolf. Efeito patrimonial da separação de fato. In: Direito de Família: aspectos polêmicos. Livraria do Advogado, 1988, p. 112: "Onde não há casamento não pode haver regime de bens, e se é o decreto separatório que liberta da coabitação, da fidelidade e da comunicação patrimonial, deve o julgador ser realista para deixar de julgar por ficção legal, esticando no espaço de sua sentença, obrigações e vínculos que os próprios cônjuges, ou mesmo os conviventes já abandonaram (...)." Em sentido contrário, Débora Gozzo, no seu livro Pacto antenupcial (São Paulo: Saraiva, 1992, p. 138) pondera que "enquanto os cônjuges estiverem separados somente de fato, o pacto antenupcial (entenda-se o regime de bens) continua a produzir seus efeitos até o momento em que uma sentença, prolatada em processo de separação judicial, acolha a pretensão do autor no sentido de pôr termo à sociedade conjugal. Este é o instante a partir do qual a eficácia do casamento cessa".
6. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p.71.
7. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo. São Paulo: RT, 1998, p. 301.
8. Idem, p. 302.
9. MALDONADO, Maria Tereza Casamento, término e reconstrução. Rio de Janeiro: Vozes, 1986, p. 116.
10. Sobre a dependência feminina, escreve Clara Coria, no seu livro O sexo oculto do dinheiro (Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997, p. 20); "As mudanças culturais que permitiram o acesso de algumas mulheres à educação e ao dinheiro não modificaram a situação de marginalidade nem as atitudes de subordinação em relação ao homem."
11. ZANN
1. Regime de bens na sociedade conjugal. 2. Regime de bens no concubinato. 3. Dissolução afetiva e partilha de bens. 4. O mau uso da pessoa jurídica em fraude à meação. 5. Personalidade jurídica e sua desestimação. 6. O processo judicial de separação. 7. A efetivação da disregard na separação judicial. 8. A efetivação da disregard na dissoluçáo da união estável. 9. . A disregard na medida cautelar. 10. A disregard e a divisão de quotas sociais. 11. A desconsideração da personalidade jurídica no âmbito dos alimentos. 12. Disregard e perícia contábil. 13. A desconsideração da personalidade jurídica na execução de alimentos. 14. Bibliografia.
1. REGIME DE BENS NA SOCIEDADE CONJUGAL
Ao se casarem, podem os nubentes optar por qualquer um dos quatro modelos de regime de bens previstos e regulamentados na codificação civil brasileira. Segundo o Código Civil brasileiro, marido e mulher assumem com as suas núpcias e por sua livre escolha o regime de bens que cuidará de disciplinar as relações econômicas resultantes do seu casamento, pertinentes ao tempo de efetiva constância e convivência desse seu matrimônio.
Salvo a escolha pactual do regime da absoluta separação de bens, usualmente por eleição contratual ou pelo simples silêncio, organizam os cônjuges um regime patrimonial denominado de sociedade conjugal, que no dizer de Spota1 começa com a celebração do matrimônio. Segundo a legislação substantiva brasileira, este regime econômico conjugal só deveria terminar pela dissolução do casamento, quer decorresse da morte de um dos cônjuges, quer da circunstancial anulação do casamento, da separação judicial ou por conseqüência do divórcio.2
Uma vez escolhido o regime de bens e selado pelo celebrar das justas núpcias, deita sobre aquele casamento o princípio da imutabilidade do regime eleito, consagrado pelo artigo 230 do Código Civil e idealizado para assegurar que pressões e falsos encantos de um dos cônjuges não permitam, com a fraqueza do outro, obter a mudança do regime econômico matrimonial, com grave risco para os seus haveres conjugais e possível prejuízo para os credores.3
Percebe-se nesse dispositivo a primeira preocupação do legislador com a eventual burla na divisão conjugal dos bens matrimoniais4, quando proíbe terminantemente toda e qualquer alteração do regime de bens após a celebração do casamento.
Deve ser no entanto destacado que, não obstante a legislação brasileira externar a perpetuação do regime matrimonial enquanto não dissolvidas as núpcias pela morte, pela separação judicial ou pelo divórcio, sensível doutrina e atuante jurisprudência inclinam-se por reconhecer efeitos patrimoniais à fática separação.
Assim, por analogia ao oitavo artigo da lei divorcista, que cuida de conferir efeito retroativo à judicial separação de corpos deferida liminarmente em juízo, também quando presente a informal separação de fato entre marido e mulher deve o legislador atribuir efeitos jurídicos a este importante evento fático, como real termo final da comunicação dos bens conjugais.5
2. REGIME DE BENS NO CONCUBINATO
Ao lado do casamento figura a relação concubinária entre um homem e uma mulher, que vivem como se casados fossem, dando à sociedade e ao derredor dos conviventes a precisa imprecisão de que constituem uma nítida família conjugal, pois organizada nos moldes do casamento tradicional, apenas que subtraída da prévia formalidade de sua pública celebração.
O texto constitucional passou a identificar nestes pares concubinos uma legítima entidade familiar, abrindo espaço legiferante para textos infraconstitucionais editados em dezembro de 1994, com a Lei 8.971, e em maio de 1996, através da Lei 9.278, com o propósito de traçar as linhas que definem os direitos e os deveres requisitados na conceituação social e jurídica de uma estável união de fato.
Rodrigo da Cunha Pereira6 pontua, com a peculiar clareza de seu texto jurídico, já não mais haver dúvida de que na atualidade uma união estável, séria e prolongada, como destaca, uma vez dissolvida pela ruptura do vínculo concubinário ou pelo falecimento de um deles, implique a comunhão de interesses que se corporificam pela eventual formação de um patrimônio comum, uma massa concubinária de bens, a merecer uma igualitária partilha.
Entre concubinos a divisão do acervo constituído na esteira do regime da comunhão limitada de bens tem a sua gênese no artigo 5° da Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, ao ordenar a divisão de móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, pois passam a ser considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, a ambos pertencendo, salvo estipulação contrária em contrato escrito.
Novidade legal, o pacto anteconcubinário deveria guardar os mesmos princípios de valor e formação previstos para o contrato pactante do casamento, até em nome da máxima dogmática de que um instituto não deve conter mais privilégios do que o outro, guardando entre eles a mais absoluta similitude de direitos e deveres, pois que repugna à sociedade apontar divergências de tratamento.
Portanto, embora a lei delegue aos companheiros a aptidão de eles convencionarem suas relações patrimoniais e, na falta de um contrato, entre eles vigore o regime legal do artigo 5° da Lei 9.278/96, ela é omissa no tocante ao momento da estipulação do pacto entre os companheiros.
A vaguidade do dispositivo sob comento permite argumentar que no plano teórico o pacto patrimonial dos concubinos poderia ser firmado a qualquer tempo do relacionamento, mesmo no seu intercurso. Entretanto, esta não seria a interpretação analítica mais coerente e consentânea com o modelo conjugal em que se inspira claramente o concubinato. A despeito do contrato concubinário, defende Guilherme Calmon Nogueira da Gama7 a sua posição de o pacto antenupcial servir de alicerce da convenção concubinária, em que sua realização deve preceder a própria configuração da convivência, assim como o regime conjugal de eleição contratual precede o próprio casamento.
Há notória dificuldade prática nessa precedência pactual ao concubinato, até porque a convivência estável é relação de trato sucessivo, contínuo como o leito de um rio, cujo volume pluvial cresce à medida que as águas seguem o seu natural curso, surgidas de uma pequena mas determinada vertente.
Assim pode ser visto que, em princípio, o pacto anteconcubinário admite variadas incursões interpretativas, que lhe retiram a mínima segurança contrariamente observada dentro do casamento. Inexiste na união estável um momento temporal que limite a feitura final do pacto anteconcubinário, assim como não há regra expressa quanto à necessidade do registro do contrato, essencial para sua eficácia contra terceiros, como oportunamente observa Gama8, nem mesmo há exigência da forma pública, servindo como porta de acesso à Fácil burla do regime de bens de concubinos.
Logo, o convivente mal intencionado haverá de encontrar na relação de concubinato via expedita e de trânsito mais relaxado, no desvio traiçoeiro da meação concubinária, já que, por enquanto, não foi possível encontrar qualquer esforço do açodado legislador em criar reais mecanismos de efetiva proteção do acervo concubinário, deixando a sua riqueza material ao alvitre da sorte e da boa-fé do concubino que se encontra na titularidade e na administração destes bens hauridos por decorrência de um estável casamento informal.
Portanto, é fácil presentemente perceber que o legislador quase sempre se olvida de inserir no seu texto regulador instrumentos eficazes de proteção das metades patrimoniais que cônjuges e concubinos reivindicam quando se fundem em afeição e sociedade.
3. DISSOLUÇÃO AFETIVA E PARTILHA DE BENS
Há toda uma extensa gama de causas geradoras da discórdia conjugal, que levam à dissolução judicial do casamento. Este trabalho não comporta desvendar os mistérios desta intrincada teia que desarma o sistema emotivo dos cônjuges embora a sua referência faça-se de incontornável necessidade, para buscar demonstrar que é freqüente testemunhar, em juízo, como a raiva, a ira e o repentino ódio tornam-se instrumentos que passam a responder ao desapego demonstrado pela alma da pessoa ainda amada.
Por ocasião da separação, usualmente quando eleita a via litigiosa, diante da resistência separatória daquele que não vê razões para a ruptura afetiva, adverte Maria Tereza Maldonado9 ser prevalente o aspecto comercial do casamento, no qual o amor recolhido pela negada correspondência afetiva cede espaço fácil e absoluto a uma visão eminentemente mercantilista daquele relacionamento que se esboroa, em que ganhos e patrimônio são manipulados para a sua partilha desigual, quando não for possível esvaziar completamente a meação do parceiro ainda desejado, mas cujo amor feneceu. De outro lado, receitas e riquezas desmoronam de inopino, num sovado discurso de uma debáclê financeira que como um vírus se inocula nos processos separatórios, na viva ânsia de buscar o mínimo arbitramento de uma pensão judicial, até na esperança de que a absoluta dependência econômica inspire a reconciliação forçada e, se irreversível a ruptura, calhe como a sórdida vingança de compensar com dinheiro e bens o frustrante sentimento da rejeição.10
4. O MAU USO DA PESSOA JURÍDICA EM FRAUDE À MEAÇÃO
Inegável que as sociedades comerciais constituem uma realidade jurídica, as quais, assim expressa Eduardo Zannoni,11 a lei reconhece como um recurso técnico para que um grupo de indivíduos possa realizar a lícita finalidade a que se propõe. Agora, é bem verdade que no passado, e assim também argumenta Calixto Salomão Filho,12 o conceito absoluto de personalidade jurídica permaneceu rigidamente intocável, cuidando o artigo 20 do Código Civil brasileiro de salientar o princípio geral da separação entre a sociedade e o sócio.
Através deste velho postulado que separa a pessoa jurídica da pessoa física de seu sócio, e que estabelece patrimônios diversos e responsabilidades dissociadas, não obstante os largos benefícios econômicos e de desenvolvimento advindos da personifcação societária, ampla porta foi aberta para que a utilização indevida do fim societário se prestasse como instrumento de fraude aos interesses de terceiros.
Protegendo sócios inescrupulosos sob o invulnerável manto da personalidade jurídica, a figura societária passou a servir como um perigoso instrumento de obtenção de resultados ilícitos e nunca desejados pelo legislador comercial - seguro da sacra afirmação de absoluta separação de patrimônios e de responsabilidades -, que deixavam qualquer Juiz prostrado e inerme de soluções judiciais que não passassem por complicadas teias processuais envolvendo terceiros prejudicados, sócios e sociedades, todos enredados na intrincada busca da anulação dos atos societários.
Conforme artigo antecedente,13 referi que com a personalidade própria e autonomia patrimonial distinta dos bens pessoais dos seus sócios, criou-se um caminho amplo, e até então completamente incontrolado, de uso da pessoa jurídica como anteparo da fraude, especialmente no campo das relações conjugais, pois a aquisição de bens próprios do casamento em nome direto de uma empresa ou até a maliciosa transferência dos primitivos bens matrimoniais para o acervo social vinham e seguem servindo de regra a propósitos notadamente abusivos, já que visam fraudar a meação nupcial.
Efraín Richard e Orlando Muiño destacam esta notória tendência do uso indevido da personalidade jurídica e convidam à reflexão de uma total revisão da doutrina da personalidade jurídica que se mostra plenamente inadequada diante do perfil da simulação, da fraude e do abuso, que grassam soltos diante do surrado conceito da sacralizada personalização. Segundo aqueles autores, uma corrente muito intensa tem tratado de desconhecer a personalidade jurídica da sociedade, desestimando-a por razões de fraude e simulação, particularmente em causas vinculadas à legítima hereditária ou à sociedade conjugal.14
No campo da dissolução judicial do casamento e agora também na seara da união estável, alçada pelo texto constitucional à condição de família, com regime legal de bens de metades condominiais e de partes iguais,15 encontra-se igualmente, largo amparo e correlata aplicação processual da teoria da desconsideração da personalidade da sociedade.
Portanto, no casamento e na união estável, há larga utilização da teoria da disregard, que trata de descobrir o fim ilícito que a sociedade encobre, penetrando por detrás da máscara societária sob a qual o sócio se esconde e, ao desestimá-la, frustrando o resultado antijurídico que se pretendeu alcançar com a sociedade pré-constituída.
Referi noutra oportunidade quão difusa e producente a aplicação da despersonalização social no campo do Direito de Família, principalmente perante a diuturna constatação, nas disputas matrimoniais (e também dentro do concubinato stricto sensu, qualificado), de o cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, se não todo, ao menos o rol mais significativo dos bens comuns. 16
Fácil concluir que desaguando todo e qualquer patrimônio com alguma razoável expressão econômica para o rol de bens da pessoa jurídica administrada por um dos cônjuges ou concubinos, com mais larga aplicação ao matrimônio, fica expedito e livre o trânsito do parceiro empresário. Este se vê dispensado de prestar contas da circulação que empreende aos bens que deveriam ser comuns e, particularmente, liberado da outorga uxória, já que em tempo de maior turbulência nupcial não precisa arquitetar desculpas para conseguir que a esposa assine a transferência de bens imóveis próprios, pois todos eles já constam como se pertencessem à sociedade jurídica, embora sirvam exclusivamente aos interesses da sociedade conjugal ou da sociedade concubinária.
Noutras ocasiões o parceiro que já vinha computando os bens conjugais no patrimônio da empresa de que só ele participa como bem apresto, preocupado com a partilha judicial da valorização da sociedade comercial, pode pura e simplesmente, às vésperas de seu intento separatório, antes mesmo de denunciá-lo à mulher, efetivar a sua aparente retirada da sociedade, transferindo a sua participação para um outro sócio, mero presta nome. Depois de judicialmente separado, ou dissolvida a sua sociedade de fato, ele retorna à empresa e à livre administração daqueles bens societários que representavam significativa parcela do acervo comum.
Essas são apenas algumas das idéias de que se servem sócios comerciais para reter ou reduzir alimentos, ou a meação de seus sócios conjugais. Zannoni17 expressa com pertinente clareza esta margem de controle sobre os bens e a dependência alimentar do cônjuge, quando o esposo empresário ou industrial se serve da forma societária apenas em seu próprio benefício.
5. PERSONALIDADE JURÍDICA E SUA DESESTIMAÇÃO
Dentro do Direito de Família, a penetração do véu societário torna-se uma poderosa arma a favor da parte mais débil do relacionamento afetivo, que, usualmente, se torna vítima da fraude ou do abuso societário. Ricardo Guilminelli18 diz que o maior mérito do instituto da desconsideração da personalidade jurídica é o fato de a sua inoponibilidade permitir uma oxigenação do direito societário, ao alcançar quem dele se utiliza com torpeza e, oculto atrás da máscara social, deseja sair impune de suas obrigações como cônjuge, como concubino e mesmo como devedor de uma obrigação de alimentos.
A fraude à lei e o abuso ou simulação na utilização da personalidade jurídica tornaram-se um adequado veículo de burla ao sistema codificado do regimes de bens. Vedando qualquer mudança na convenção patrimonial de origem e cercando a massa de bens conjugais com princípios de ordem pública que inibem a transmissão unilateral de direitos reais, sem o expresso consentimento do parceiro co-proprietário, bastava incorporar os bens do casamento a uma sociedade comercial para que toda esta segurança jurídica virasse letra morta da lei.19
Através da teoria da disregard doctrine não é anulada e nem se descarta a personalidade jurídica, mas, somente, desconsiderada do caso concreto, a eficácia do ato fraudulento perpetrado em nome da pessoa jurídica, porém com c objetivo de favorecer, em geral, a pessoa de um sócio, em detrimento do terceiro
Conforme pude explanar noutra oportunidade,20 sem discutir a sua validade, o Juiz ignora pura e simplesmente o ato fraudulento executado em comando contrário à lei, mas mantém intocados todos aqueles outros atos e negócios societários não manchados pela fraude ou pelo abuso de direito.21
Assim visto, em conclusão narrativa, sociedade e sócios podem ressponder pelo uso abusivo, fraudulento ou simulado da sociedade, direta e inversamente, ora atingindo os bens sociais, ora responsabilizando os sócios e até a sociedade, quando se tratar de utilizá-la abusivamente, no maldoso afã de fugir escancaradamente ao dever pessoal de alimentação.
6. O PROCESSO JUDICIAL DE SEPARAÇÃO
Evidentemente que numa ação de separação judicial, de dissolução de união estável e mesmo de divórcio direto, quando ausente qualquer consenso na composição amigável da liça, é preciso recorrer ao processo litigioso. Dependendo do caso concreto, quando ainda recente o rompimento da união, e os fatos demonstram que os litigantes ainda estão nitidamente vinculados a suas mútuas, recíprocas e subjetivas expectativas, a demanda litigiosa conterá uma carga menor de tolerância e um processo muito latente de culpabilização, como eterno bode expiatório da patologia familiar.
Precedendo separação fatual de tempo inferior a um ano, a lei divorcista reclama para as pessoas legitimamente casadas a pesquisa da culpa pela separação, para que o julgador possa atribuir responsabilidades ao cônjuge que teria faltado com deveres do matrimônio ou agido em conduta desabonatória da moral conjugal de seu consorte, basicamente, não preservando o dever de respeito e de estima aguardados como indissociáveis normas éticas de trajetória nupcial.
A discussão da culpa na ação de dissolução da união estável é bastante controvertida na doutrina brasileira, pendendo opiniões que a julgam obrigatoriamente presente no processo litigioso, mercê dos direitos e deveres previstos em lei para os conviventes22 e com reflexos no direito aos alimentos. Acrescem, ainda, que não examinar a culpabilidade no concubinato é privilegiar este instituto diante do casamento.
Feitas estas ponderações, importa apenas inferir que a ação litigiosa de separação de cônjuges ou concubinos, quando ainda aceitável discutir as causas de ruptura do relacionamento afetivo, aceita trazer por argumento complementar de responsabilização toda e qualquer atitude do parceiro que se vale da máscara societária para desviar da divisão os bens considerados comuns, numa tentativa que deve ser rechaçada com o uso episódico da teoria da despersonalização da pessoa jurídica, já que esta tentativa de dilapidação da meação do outro parceiro configura inequívoca conduta desonrosa.
Desta sorte, ao lado de qualquer causa usual de separação, quer decorra ela de infração aos deveres do casamento, como são exemplos o adultério, a maliciosa deserção do lar ou o abandono material, quer deflua de alguma das múltiplas configurações subjetivas da conduta desonrosa, a este elenco agrega o uso fraudulento ou abusivo da máscara societária, em prejuízo da meação do cônjuge ou do concubino inocente.
Em suma, como já referi noutro texto de doutrina,23 o ato lesivo praticado sob o manto da pessoa jurídica servirá como causa isolada ou suplementar do próprio pleito separatório, pela via expressa da conduta desonrosa, claramente identificada na ilícita e desonesta atitude do esposo que se vale da pessoa jurídica para o desvio sorrateiro da meação de seu par.
Trata-se, portanto, de verificar se o Juiz da separação irá gerar sentença judicial que enfoque como motivação de decidir não somente os efeitos patrimoniais resultantes de aplicação da teoria da desconsideração, mas também o ato dilapidatório denunciado, como causa isolada ou complementar de culpa pela falência da relação. No entanto, como causa subjetiva para caracterização da culpa, só poderá ser admitida se a demanda de separação litigiosa for promovida em tempo inferior a um ano de fática ruptura da convivência, pois que depois deste espaço de tempo só será possível apreciar alguma razão objetiva da separação, vinculada unicamente, no decurso de tempo.
Este mesmo raciocínio pode ser espelhado em uma ação de separação judicial promovida contra um cônjuge porque, por exemplo, ele acusou falsa e publicamente sua esposa de haver praticado adultério, ou de ter mantido relações homossexuais, tudo disseminado com o único intuito de ofendê-la moralmente.
Sendo proposta a ação judicial separatória antes de um ano, termo final para o enfrentamento processual da culpa, o cônjuge ofendido terá uma motivação causal do seu pleito separatório, que são as ofensas morais expendidas, ou poderá ter uma pluralidade de causas, acaso existam outras infrações cometidas pelo ensandecido esposo, mas, sobretudo, também por estes mesmos fatos, poderá exercer uma pluralidade de pedidos, ao cumular a separação judicial com a condenação pecuniária do esposo ofensor em danos morais.24
Assim visto, culpa e pedido sempre caminham juntos no Direito de Família brasileiro, permitindo no tempo previsto de um ano de fatual separação o exame da causa de separação e o seu reflexo patrimonial, porquanto os interesses econômicos são protegidos por disposições normativas aplicáveis à sociedade conjugal e também ao concubinato. Contudo, passado um ano de consecutiva ruptura da vida em comum,25 desimporta ao processo ir à cata do cônjuge responsável por esta mesma ruptura informal.
Neste conjunto de relações afetivas, quando desfeitas, sempre e sem prazo de prescrição ou de preclusão,26 pois que respeita à meação, a sentença judicial deve alcançar a teoria da despersonalização da pessoa jurídica, como instrumento de invulgar eficácia para coatar a velha prática de fraude à meação, quando subvertida a função da sociedade comercial.27
7. A EFETIVAÇÃO DA DISREGARD NA SEPARAÇÃO JUDICIAL
Em antigo aresto relatado o então Desembargador Athos Gusmão Carneiro28 constatava existir verdadeiro abuso quando se trata, com a ajuda da pessoa jurídica, de burlar a lei, violar obrigações contratuais ou prejudicar fraudulentamente terceiros. Sugeria, com seu voto, acolhido à unanimidade, fosse aplicada a teoria da desconsideração para atingir com a penhora os bens da sociedade, por dívida do sócio que, devendo, se ocultava por detrás da cortina societária.
Estranhamente, este tabu seguia no âmbito processual do Direito de Família, permanecendo inermes os seus operadores, que, praticamente prostrados, simplesmente assistiam esposos servindo-se da forma societária em seu próprio e único benefício, com extremos clássicos citados por Zannoni,29 nos quais a habitação conjugal e o automóvel particular da esposa eram de propriedade da sociedade, que permitia o seu uso gratuito a título de comodato, cujo termo final sempre coincidia com a vontade unilateral de separação, manifestada pela esposa comodatária da empresa.
Dobson30 toca na espinha dorsal das relações sociais, que resultaram na criação da doutrina da disregard, ao referir que elas nascem da fidúcia, a qual deve existir em todas as relações humanas, como acontece entre marido e mulher, pais e filhos, sendo que, nestas relações, nenhuma das partes deve exercer pressões ou influências, nem obter ganhos indevidos, realizando transações que importem numa vantagem e correlato prejuízo, nem se conduzir de outra maneira que não seja com a mais absoluta boa-fé, fazendo conhecer a outra parte todos os detalhes da transação. É que neste âmbito a astúcia comercial, a ganância e o desafio de qualquer natureza se acham proibidos, já que estão totalmente afastados por esse especial vínculo interno de confiança que não admite qualquer vantagem.
E quando a confiança genérica a todas as relações humanas é fraudada, lembra Suzy Koury,31 não fica comprometida a segurança e nem a justiça, pelo fato de ficar a cargo dos juízes e dos tribunais o exame das circunstâncias do caso concreto para a aplicação da desconsideração.
Na doutrina brasileira, em obra das mais recentes, escreve Bittar32 que a aplicação da disregard busca elidir fraudes e deveres contratuais, em que por meio de subterfúgios, ou de expedientes maliciosos e, portanto, ilegítimos, é colhida vantagem indevida para si ou para outrem, com o aproveitamento irregular da personalidade social.
Sensível a observação de Fábio Ulhoa Coelho,33 de que não é exigida a intenção deliberada de causar prejuízo, bastando que se tenha consciência de produzir dano. Por evidente, todo dano, mormente causado à meação, importa na sua reparação; como claramente acentua Marçal Justen Filho,34 esse mesmo dano é afastado pela teoria do superamento da pessoa jurídica.
Os meios engendrados para prejudicar a meação conjugal, atualmente inclusa a metade concubinária, seguem sendo os mais engenhosos possíveis. Ilustra uma destas hipóteses que coloca em perigo iminente a porção conjugal e altera ilegalmente o regime de bens em relação à esposa o expediente da aparente transferência da totalidade das quotas sociais detidas pelo varão em determinada sociedade comercial, sendo esta, por seu turno, titular do acervo de bens conjugais.
Ainda que esta alteração contratual idealizada para privar a mulher do exercício de seus direitos sobre os bens comunicáveis seja perfeita quanto ao seu fundo e à sua forma, por ter atendido às condições de existência e validade e obedecido às regras de publicidade, ainda assim o ato é ineficaz em respeito ao cônjuge ou concubino lesado, porque foi o meio ilícito exatamente usado em detrimento dos legítimos direitos de partição patrimonial.
Diante deste quadro de indisfarçável ilicitude, comete ao decisor simplesmente desconsiderar na fundamentação de sua sentença judicial, vertida no ventre do próprio processo de separação ou de dissolução de união estável. As alterações contratuais que cuidaram de transferir ou reduzir a participação social do cônjuge empresário são ignoradas pelo julgador, que as desconsidera no âmbito de sua sentença judicial e computa para a partilha conjugal a participação social preexistente à fraudulenta subcapitalização das quotas sociais, repondo-as ao estado anterior ao da flagrante usurpação da meação do cônjuge espoliado.
Assim foi decidido, por exemplo, na separação judicial litigiosa de número 01291074842, na 7ª Vara de Família e Sucessões de Porto Alegre, em que o Magistrado singular deliberou por assegurar a meação da autora, inclusive sobre as quotas sociais fraudulentamente doadas pelo demandado 35
Tratava-se de uma ação de separação judicial litigiosa cumulada com vários pedidos pertinentes às relações conjugais em estágio de dissolução, em que, às vésperas36 de desertar do lar, deixando a esposa gravemente enferma, com invulgar insensibilidade cuidou o varão de se afastar da sociedade de engenharia da qual era sócio com outros familiares, sendo a empresa a dona dos principais bens usados pelos separandos, à exceção da vivenda conjugal.
A inicial requeria oportuna auditoria que fosse capaz de promover o exato levantamento patrimonial societário, reconstruindo o seu correspondente lastro patrimonial existente às vésperas do malicioso abandono arquitetado e posto em prática pelo marido, sendo reposta a igualitária partilha com suporte na teoria da disregard.
Claro está que o acolhimento da teoria da superação da personalidade jurídica também poderia levar à alternativa sentencial da compensação de bens, em que o montante desviado com o mau uso da personalidade jurídica, depois de minuciosamente apurado em criteriosa avaliação judicial, restaria recompensado pela entrega ao cônjuge prejudicado de outros bens ainda constantes da massa conjugal, até o montante da indenização.
A propósito do assunto, o articulista J A. Penalva Santos37 observa que, ao levantar o véu da personalidade da sociedade, pode ser trazido de volta o bem desviado ou direito ao patrimônio lesado, e complementa: "Não importa tenha o bem, depois, entrado no giro dos negócios; o importante é a prova do seu ingresso: na falta de bens, restitui-se o equivalente com perdas e danos."
Registram os anais forenses uma situação fática em que o marido era sócio de uma empresa intitulada R.E.I. Ltda., destinada a atuar no ramo imobiliário da construção civil, incorporação e compra e venda de imóveis. Em nome desta sociedade mercantil estava sendo construído um edifício com inúmeros apartamentos e lojas comerciais. Planejando a sua separação, o marido contratou, com o auxílio de dois presta-nomes, e aliado ao seu próprio irmão, a sua aparente retirada da sociedade comercial. Já disfarçado de ex-sócio da RE.I. Ltda., promoveu a sua separação judicial e, antes de transformá-la em divórcio, realizou nova alteração contratual em que retorna à primitiva sociedade, com a mesma quantidade de quotas de origem, num notório manejo fraudulento à meação da ex-esposa, mediante um jogo de fria troca de titularidade das quotas.
Não fosse pela aplicação episódica da desconsideração da personalidade jurídica, todo este arranjo fraudulento certamente precisaria passar por complicadas ações anulatórias, envolvendo num litisconsórcio indesvendável38 a mulher lesada em sua meação, o seu ex-marido, o irmão deste, a empresa e os seus sócios fictícios.
Nesta demanda distribuída como de indenização, a ex-mulher requeria, com fundamentação na declaração judicial e incidental de inoponibilidade de efeitos ao jogo societário articulado em seu prejuízo, que fosse indenizada, mediante oportuno periciamento procedido em liquidação de sentença, pelos danos emergentes e lucros cessantes causados pela dolosa transferência em fraude à sua meação das quotas sociais da empresa conjugal.
Noutra situação processual, com uma planejada antecedência à separação judicial, quando já visíveis os sinais exteriores de rompimento afetivo, o varão constituiu, com os seus habituais sócios das demais empresas de que participava, uma holding denominada BDMP Ltda. Quando aforada a separação amistosa, ingressaram na partilha alguns bens registrados na pessoa física do casal e somente a holding BDMP Ltda., para cuja sociedade verteu todas as demais empresas e acresceu cláusula contratual que dispensava a outorga da sócia. Mesmo antes de concluída a partilha, a separanda já não mais detinha qualquer bem conjugal, salvo alguns hauridos com a separação, do acervo conjugal como pessoa física.
A ação proposta propugnava, com escora na teoria da disregard, a ineficácia episódica39 dos atos cometidos em fraude à real meação da demandante e buscava responsabilizar o aforado pelo ressarcimento destes danos, respondendo ele com os bens liminarmente postos em indisponibilidade, em pedido cautelar incidental cumulativo,40 até o montante da sua efetiva meação, mais perdas e danos, sem que o ato jurídico implicasse dissolver a sociedade.
Abreviava-se, ademais, toda uma complicada teia processual que buscasse anular alterações contratuais da empresa, correndo riscos de improvimento liminar do pedido por ilegitimidade de parte, pois esposa de sócio não é parte legítima ad causam para anular em juízo contrato de sociedade comercial, conforme já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, na Ap. Civ. 193.875-2/4, por sua 18ª Câmara Cível.41
8. A EFETIVAÇÃO DA DISREGARD NA DISSOLUÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL
Tudo até agora articulado em relação à desconsideração da pessoa jurídica, com a sua aplicação no processo de separação judicial, pelas ponderações já anteriormente traduzidas, resulta, conseqüentemente, também aplicável à união considerada efetivamente estável e, portanto, comparável ao casamento civil.
No Ag. Ins 593074602 da 7ª Câmara Cível, sendo Relator o então Desembargador Paulo Heerdt, foi desconsiderada a personalidade jurídica de sociedade formada por dois sócios, concubinos casados pelo religioso, rejeitado pedido de liminar em embargos de terceiro promovidos pela sociedade que visava obstar arrolamento de bens promovido pela mulher. O aresto concluía existir a possibilidade de fraude do varão, ocultado sob o manto da pessoa jurídica.
Pode também ser vislumbrada situação fática de concubinos, em que depois de quase dois lustros de estável coabitação, o varão vem a falecer, deixando todos os bens pertencentes ao acervo concubinário em nome de uma empresa de transportes que havia constituído ainda na constância de seu primeiro matrimônio.
Refeita da fatalidade do decesso de seu parceiro, depara a companheira com a realidade, nunca antes atentada, de que a sua moradia, o carro de uso dos concubinos e até a vivenda praiana estavam registrados em nome daquela apresta sociedade comercial.
Valendo-se desta particularidade, a primitiva esposa, da qual o varão estava fática e conclusivamente separado, e seus filhos conjugais promoveram manu militari o rápido e arbitrário desapossamento da concubina daqueles bens que de longa data estavam sob a sua posse, prevalecendo-se a esposa e os seus filhos herdeiros do fato de estes bens constarem em nome da pessoa jurídica.
Mantida na posse dos bens concubinários através de demanda possessória com pleito de liminar, seguramente esta ação precisou discorrer acerca da desconsideração da personalidade jurídica. Assim se deu porque, para fugir da legislação que atualmente ordena a partilha dos bens adquiridos na constância da estável união de fato, o companheiro valeu-se em vida da pessoa jurídica como porto seguro de incomunicabilidade dos bens. Com este esquema coube à companheira pleitear a partilha do crescimento da sociedade comercial, a contar do início de seu concubinato, sob pena de a sua inércia processual autorizar à primitiva esposa e aos filhos do casamento enriquecerem ilicitamente, pois todos acabariam invadindo a meação da concubina, que nada receberia, em razão de os bens amealhados durante a convivência estável constarem como sendo de propriedade da pessoa jurídica.
9. A DISREGARD NA MEDIDA CAUTELAR
Enquadrando sob o nome genérico de tutelas de urgência pertinentes ao Direito de Família, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira42 acrescenta que a sensibilidade dos valores jurídicos e emocionais do relacionamento humano exige no plano processual uma pronta resposta da jurisdição.
Com efeito, na seara do Direito de Família a paz e a segurança familiar já não mais podem ser abaladas pela sacralização da pessoa jurídica, assistindo todos imóveis ao sepultamento, pela fraude, pelo abuso de direito ou pela simulação perpetrados em nome do ente moral, de direitos e bens que têm real origem no casamento ou na união estável e que devem ser preservados pelas diversas medidas cautelares postas a serviço do jurisdicionado.
Dentre as cautelas de uso corrente, está a figura do arrolamento judicial de bens, definida por Cláudio Pedrassi43 como "cautelar nominada, constritiva, antecedente ou incidente, destinada a obter tutela jurisdicional cautelar para garantir e assegurar bens, a priori indeterminados, sobre os quais se tem interesse, não como mera garantia de crédito, mas sim como patrimônio sobre o qual se tem direito constituído ou a constituir (...)".
O auto de arrolamento atua como se estivesse retratando os bens para a sua futura partilha, permitindo uma noção bastante exata dos bens reputados comuns ao casamento e que ficam sob a guarda de um fiel depositário.
Só que sem o auxílio da doutrina da superação da personalidade jurídica, posta para negar o absolutismo da autonomia patrimonial da pessoa jurídica,44 a sociedade servia como adequado instrumento e um porto altamente seguro para aquele sócio que dela se valia em desacordo com o seu objeto social, apenas para auferir proveito pessoal pela fraude ou exorbitando de seus direitos.
Vertidos bens conjugais para a sociedade comercial da qual participa o marido ou o concubino, estava o esposo numa situação confortável, agindo na certeza da impunidade, já que a lei não o apanhava. Nestas condições adversas, o germe da dilapidação patrimonial atuava com muito mais desenvoltura, já que o sócio cônjuge perpetrava o esvaziamento do acervo conjugal, protegido que estava pelo anteparo da pessoa jurídica.
Assim, mesmo diante destes indícios tão sérios e gritantes de burla à meação, fingidas transferências nem sequer podiam ser detidas porque executadas por terceiro que se escondia sob o véu societário, e inepta qualquer proteção cautelar.
A tão-só desconsideração da personalidade jurídica pode dar manejo expedito e eficaz para garantir a intangibilidade da verdadeira meação, inclusive com o arrolamento judicial dos bens existentes em nome da pessoa jurídica que vem sendo usada como instrumento da fraude.
Não importa que se trate de concubinato, conforme já decidido pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no Ag. Ins. 59307460245 ou de casamento, conforme decidido no Mandado de Segurança 593116601, de 23 de junho de 1994, da 8ª Câmara Cível, em que foram impetrantes R.E. Ltda. e G. Sociedade Anônima Construções e Incorporações, em cuja demanda originária o Juiz singular deferiu a averbação da ação de separação judicial litigiosa nos Ofícios de Imóveis, à margem de todos os bens registrados em nome das empresas construtoras.46
Enfim, é como esclarece Luiz Guilherme Marinoni47 ao escrever que não deve ser confundida a tutela jurisdicional com a sentença, "porque a diversidade das situações de direito substancial exige que sejam predispostos meios de tutela adequados a essas diferentes realidades".
Deste modo, a tutela cautelar trará, com efeito, resultado útil ao processo, evitando e acautelando a triste constatação, em sentido contrário, de que empresa e cônjuge-sócio só se serviram mutuamente para lucrar com a separação, enquanto ingenuamente negadas tutelas jurisdicionais que seriam capazes de preservar o resultado útil de uma extenuante demanda que cuida de selar a ruptura judicial de uma união de duas pessoas que já não mais se entendem.
10. A DISREGARD E A DIVISÃO DE QUOTAS SOCIAIS
Conforme tem sido mostrado ao longo deste estudo acerca da teoria da desestimação da personalidade social, a sua aplicação processual pode resultar em inúmeros efeitos, como a ordem judicial de retorno ao acervo conjugal dos bens passados fraudulentamente para a sociedade comercial, desconsiderando a sua transferência para a sociedade e ordenando a sua integral partilha.
Existindo outros bens no acervo do casal, a sentença judicial pode ordenar a sua mera compensação em prol do cônjuge ou companheiro prejudicado, até o montante da massa de bens desviados com o uso da máscara societária. Como também a decisão pode ser orientada pela simples e episódica desconsideração de qualquer alteração contratual que tenha sido utilizada para reduzir a participação societária do cônjuge e, deste modo, buscado excluir maliciosamente da partilha a empresa e o seu correspondente lastro patrimonial, porquanto ao esvaziar suas quotas o consorte empresário esvazia a participação conjugal no capital da sociedade mercantil.
Igualmente o decisor judicial que examina o processo de separação ou de dissolução da relação afetiva do casal pode simplesmente ignorar qualquer transação que simule a retirada de um sócio meramente conivente, cuja participação na empresa estaria sendo justamente paga com expressivos bens da sociedade, num notório ajuste concertado em fraude exclusiva à meação da mulher de um dos sócios remanescentes e que enfrenta a sua separação em juízo, ou está em vésperas de promovê-la.
Entretanto, tudo o que o Juiz do processo de separação judicial ou de dissolução do concubinato não pode ordenar é a correlata dissolução da sociedade comercial para efeitos de partilha, e nem mesmo a inclusão do cônjuge ou companheiro prejudicado como sócio da empresa.
Cristiano Graeff Jr.48 está entre os poucos doutrinadores que enfrentam a matéria, ao explicar que no decorrer da sociedade o sócio sujeita-se às condições do respectivo contrato social, que o status de sócio é conferido ao cônjuge admitido pela sociedade e que este caráter personalíssimo não se comunica ao seu cônjuge ou ao companheiro em razão da affectio maritallis ou por conseqüência do regime de bens. A apuração do valor das quotas só terá lugar na dissociação parcial ou total da sociedade mercantil.
Em complemento, aduz Graeff49 que a dissolução exige hipótese taxativamente enumerada na lei ou no contrato, sendo vedado, Fora destas hipóteses, que o cônjuge ou o companheiro dissolva a sociedade comercial em execução de partilha, mesmo depois de haver recuperado com a aplicação da teoria da despersonalização da sociedade jurídica a quota social que o seu parceiro tentou dissipar, escondido atrás do biombo do absolutismo da personalidade jurídica.
É a orientação colhida dos artigos 334 do Código Comercial e 1.388 do Código Civil.50 A meeira passaria a ostentar a condição de sócia do sócio, na divisão das quotas deste último, ficando ambos em condomínio de quotas, sem que, com isso, ela tenha alguma ingerência sobre a pessoa jurídica.
É como sustentou o Juiz da Vara de Família em Criciúma, Santa Catarina, Dr. Jorge Luís Costa Beber, na sentença por ele proferida na ação de partilha nº 020.98.003319.5, ao concluir ser "indisfarçável que a partilha decorrente do regime de bens não poderá interferir na esfera jurídica de terceiros, sendo ilegal compelir os demais sócios a aceitar seu ex-cônjuge como sócia, o que seria efetuado através da simples transferência de quotas".51 E concluiu por declarar os litigantes da ação conjugal de partilha de bem societário como condôminos, em partes iguais, das quotas sociais cujo titular era o varão, sem que a sua decisão pudesse gerar efeitos perante a sociedade, valendo tão-somente como uma subsociedade do quinhão societário do marido.
Neste quadro dos fatos, comete ao subsócio promover posteriormente, no juízo do cível e do comércio, a venda da sua quota condominial, gozando enquanto não extinto o condomínio do rateio dos lucros que porventura resultarem da participação do sócio real, seu ex-cônjuge ou ex-companheiro.
Este é o mesmo entendimento colacionado por Eduardo Vaz Ferreira,52 ao reconhecer o caráter personalíssimo do cônjuge que integra uma sociedade comercial, conservando ele o título de sócio com todas as prerrogativas inerentes a tal título, de modo que nem a separação judicial e nem a partilha dos bens repercute no funcionamento da sociedade. No entanto, Ferreira sugere que na divisão judicial dos bens se promova a compensação, adjudicando ao sócio as quotas, exatamente em virtude desta qualidade pessoal da participação social. Esta orientação vem ao encontro justamente do propósito compensatório que amiúde se faz possível pela aplicação judicial da disregard, sempre que existirem outros bens que, presentes no patrimônio conjugal, permitam sejam compensados em Favor do parceiro prejudicado pelo mau uso da personalidade societária.
11. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO ÂMBITO DOS ALIMENTOS
Com singular precisão, escreveu Rolf Serick, citado por Fassi e Bossert,53 que a sociedade jurídica não se identifica com os homens que se acham por detrás dela. Prosseguem estes autores, em lapidar arremate, dizendo que respeitar dogmaticamente a personalidade do ente social poderia em muitos casos levar a convalidar atos que o direito não pode respeitar sem desmentir os seus próprios fins.
Penso que é no âmbito dos alimentos judicialmente requisitados que ocorrem, por certo, com maior e mais inquietante freqüência, os atos que procuram dissimular pela via societária a verdadeira capacidade econômica e financeira da pessoa física que tem um dever legal de alimentos.
Por oportuno, asseveram Caimmi e Desimone54 estar convencidos de que os mecanismos de penetração das formas jurídicas são perfeitamente aplicáveis aos casos de insolvência alimentar fraudulenta. Entendo, entretanto, que a disregard não só deve servir aos casos de insolvência alimentícia fraudulenta, mas, também, ao seu arbitramento no processo ordinário de conhecimento, assim como em relação à sua execução judicial.
Não há como esquecer, na diuturna prática forense, que os alimentos usualmente restam estipulados em juízo com a útil escora na conhecida teoria da aparência, sempre que o alimentante, sendo empresário, profissional liberal ou autônomo, e até mesmo quando se apresente supostamente desempregado, circule ostentando riqueza incompatível com a sua alegada carestia.
É que configura prova praticamente impossível aferir a exata dimensão dos regulares e periódicos ingressos financeiros dos alimentantes que não são empregados e, sobre a base dos seus ganhos, calcular ajusta soma do abono alimentar. A única modalidade deste arbitramento judicial está no ato de o julgador coletar elementos probatórios de convicção pessoal, sustentados na envergadura do patrimônio do obrigado alimentar.
Portanto, o acesso de convencimento judicial da capacidade alimentária acaba buscando parâmetros no cabedal de bens do alimentante, mais apropriadamente nos indícios e nas presunções da riqueza por ele exteriorizada, tudo vinculado ao seu modo de viver e à atividade singular ou plural que ele desenvolve.
No trato processual dos alimentos a pesquisa destes ingressos tem sido costumeiramente dificultada pelo alimentante quando ele é sócio de alguma empresa e aproveita-se desse fato para agir escondido sob o véu empresarial, mantendo vida e atividade notoriamente faustas, em contraponto ao seu miserável estado de quase indigência, considerando os parcos rendimentos que a sociedade lhe alcança como pro labore, isso quando ele não se retira ficticiamente da sociedade, embora siga nela atuando na suposta condição de preposto.
Teresa Arruda Alvim Wambier55 apanha muito bem a matéria atinente à tutela da aparência e encontra na teoria da desconsideração da pessoa jurídica uma justa solução de resolução do litígio alimentar, naquelas situações em que o ex-marido (e vale para o ex-companheiro e pai) hesita em prestar alimentos aos seus dependentes, alegando que tem baixos rendimentos, enquanto transita publicamente soberbo, se não exteriorizando o luxo com excessos, ao menos mostrando que não se priva de um padrão social diferenciado, num demonstrar diário que caminha na contramão de sua postura processual.
Na Ap. Civ. 597135730, da 7ª Câmara Cível do TJRS, foram mantidos alimentos provisionais de 12 salários mínimos para a esposa, mais despesas de moradia e saúde, valendo-se da aparência de riqueza externada antes do processo fático de separação56 e destacando a forma fraudulenta com que o marido, já visualizando a separação do casal, "doou" a sua participação societária na R. Engenharia ao seu pai, numa intenção inequívoca de impossibilitar qualquer pensionamento digno à ex-esposa.
Ao lado de configurar uma odiosa postura criminal de abandono material o uso abusivo, simulado ou fraudulento da pessoa jurídica no intuito de negar os adequados alimentos, uma visão mais atualizada do direito mostra ser possível, inclusive, responsabilizar criminalmente a pessoa jurídica.
No âmbito dos alimentos, a empresa que empresta o seu véu ao sócio que almeja burlar a sua dívida alimentar57 não deve ficar impune ao artifício ilícito, como ocorreu na separação judicial litigiosa nº 01291069282, que tramitou pela 1ª Vara de Família e Sucessões de Porto Alegre, na qual o Juiz monocrático entendeu que a empresa deveria ser responsabilizada pela pensão arbitrada, já que detrás dela o alimentante se escondia. Conforme referi noutro trabalho,58 naquele processo a prova demonstrou que o réu continuava à testa da sociedade, nela comparecendo e deliberando diariamente, não obstante em seus contratos de alteração social houvesse sido articulada artificiosamente a sua simbólica retirada.
Em síntese, visa a disregard coibir em derradeiro estas equivocadas e acanhadas decisões judiciais59 que teimam em decantar a autonomia patrimonial da personalidade jurídica, mesmo diante de contundentes evidências que cuidam de exteriorizar escancaradamente a riqueza do devedor alimentar.
Quando um alimentante compra e usa bens em nome de seus parentes, o decisor, já calejado com tão batidos estratagemas, não demanda qualquer dificuldade em quantificar a pensão com suporte nesta magnanimidade abusivamente ostentada. No mesmo diapasão, afigura-se desconcertante e delicadamente injusto tolerar que o decisor articule postura distinta, apenas porque no lugar do parente é a empresa que assume esse posto de presta-nome.
Perante esses conhecidos indícios, soa covarde que decisões prossigam protegendo o sigilo e a suposta individualidade patrimonial da personalidade jurídica, nas mais diversificadas hipóteses, que vão desde o simples indeferimento do pedido de ofício solicitando que venham aos autos as contas bancárias exploradas pela empresa da qual o devedor de alimentos é o principal sócio,60 passando, inclusive, pelo indeferimento de perícia contábil na escrita da empresa, com vistas ao levantamento dos ganhos hauridos pelo sócio devedor alimentar.
12. DISREGARD E PERÍCIA CONTÁBIL
Incrivelmente, ainda existem decisões judiciais controversas acerca da admissão para a realização de perícia contábil em sociedade comercial, visando a apuração de ganhos de sócio devedor de alimentos.
Agravo de instrumento interposto contra decisão singular proferida em ação de alimentos que deferira prova contábil em empresa da qual o agravante fora diretor mereceu provimento perante a 3ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,61 que julgou inadmissível sujeitar à perícia contábil uma empresa estranha à demanda alimentar.
É de outro lado a lição sustentada por Cristiano Graeff Jr.,62 ao invocar o rigor da Súmula 260, do Supremo Tribunal Federal,63 que limita o exame de livros comerciais em ação judicial às transações entre os litigantes.
De qualquer modo, tem prevalecido o bom senso, como adverte Teresa Arruda Alvim Wambier,64 ao lembrar que "não afronta a regra do sigilo comercial permitir-se o exame pericial de livros contábeis da empresa, em caso de separação judicial, para fins de partilha. Prevalece sobre esta regra a obrigação de colaborar com o Poder Judiciário, na investigação da verdade".
Embora siga sendo claramente privilegiada a completa separação entre pessoa física do sócio e pessoa jurídica da sociedade da qual ele participa, Yussef Said Cahali65 defende a tese da perícia contábil em sociedade comercial da qual o cônjuge participa como sócio ou diretor, especificamente com o objetivo de apuração da sua capacidade contributiva, excluída qualquer outra perquirição investigatória concernente a outros assuntos, em relação aos quais, complementa Cahali, preserva-se o sigilo da atividade empresarial.
Tenho que se deva ir adiante com o princípio absoluto de colaboração para com o Poder Judiciário na busca da verdade e do sigilo da atividade comercial, sempre que restar patente que o instituto da personalidade jurídica está sendo empregado para fins condenáveis pelo Direito e pela moral, agindo na contramão do seu fim social e, assim, causando irreversíveis danos ao parceiro.
Há limites de ética processual a serem rigidamente observados quando o Juiz verifica que o cônjuge ou companheiro empresário conduz-se apenas por sua ira amorosa, valendo-se da máscara societária como útil e sacro instrumento na injusta obtenção de resultados materiais que visam o seu único e ilícito proveito.
Na procura do justo, são inadmissíveis, sob qualquer pretexto, artifícios ou simulacros tendentes a fraudar partilha ou sonegar criminosamente a adequada alimentação essencial à sobrevivência de pessoas dependentes. É ato de nenhuma suportabilidade, e que ética alguma justifica respeitar, invocar a distinção de personalidades em nome de inúteis conceitos de ordem meramente processual, idealizados para outra classe de litígio. Não podem ser aceitos esses princípios quando, à vista das evidências, terceiros são espoliados e prejudicados com o uso ilegal e abusivo da personalidade jurídica, que tem servido, com preocupante frequência no Direito de Família, como instrumento à causa do logrante litigante, o qual se movimenta ágil e impune, por detrás da sociedade mercantil que pôs a seu exclusivo serviço.
Destarte, em perícia que venha a ser ordenada numa ação judicial de dissolução de casamento ou concubinato, e que por hipótese também agregue pedido inicial de arbitramento de alimentos, presentes as suspeitas do parceiro-sócio estar se valendo da sociedade mercantil em disfunção das finalidades da empresa, com efeito que o Juiz da demanda, e desde que provocado por específico pedido contido na inicial, deverá encaminhar o processo para uma suspensão episódica do princípio da separação entre pessoa jurídica e pessoa física - membro desta mesma sociedade.
Portanto, a perícia poderá não apenas ser contábil, para apuro de valores da efetiva capacidade pensional, como também poderá implicar pesquisa e avaliação do acervo patrimonial da empresa, buscando apurar esmiuçadamente a dolosa transferência de bens, quotas e alternância de sócios, tudo num jogo claramente ensaiado para perpetrar induvidosa fraude à meação do cônjuge e aos alimentos de seus dependentes.
Talvez apenas seja necessário o auxílio de um perito engenheiro, ou arquiteto, com competência para a avaliação patrimonial, logicamente auxiliado pela pesquisa contábil.
13. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA EXECUÇÃO DE ALIMENTOS
Antigo tormento adicional surgia na mais dramática de todas as demandas, quando depois de judicialmente estipulada a pensão alimentar, o alimentante transferia suas quotas sociais para parentes, simulando seu afastamento da sociedade, embora prosseguisse à testa da direção da empresa, atuando com procuração.
Outro expediente de uso rotineiro consiste em esquivar-se do pagamento da dívida alimentar, escudado na circunstância de a pessoa jurídica possuir bens, enquanto o seu sócio, devedor dos alimentos, vive numa completa indigência.
É oportuno recordar que a teoria da despersonalização da personalidade jurídica há muito deixou de ser mero dogma importado do Direito estrangeiro, já estando inserido em importantes leis brasileiras, como são exemplos o artigo 28 da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor e o artigo 18 da Lei 8.884, de 11 de junho de 1994, a Lei Antitruste, isso sem deslembrar o artigo 2°, § 2°, da CLT, e os artigos 133, inciso II, 134, inciso VIII, e 135 do Código Tributário Nacional.
Além disso, o Novo Código Civil acena em seu artigo 5066 com a introdução, em seu texto, do princípio da desconsideração da pessoa jurídica. Assim pode ser logo vislumbrado que o princípio da desconsideração da personalidade jurídica está inteiramente integrado ao texto legal brasileiro, e embora debute oficialmente na nova codificação civil, de muito tempo já vinha sendo amplamente acolhido em diversas áreas do Direito brasileiro.
Bem vista a jurisprudência nacional na execução de créditos, em que a disregard vem mantendo larga aplicação, tanto direta como inversamente, nesta última, quando se trata de penhorar bens pessoais dos sócios por dívidas da sociedade.67
Sobre a responsabilidade dos sócios por dívidas da sociedade, em alentado artigo doutrinário, Raimundo Carvalho68 entende ser de menor importância perquirir a base legal para a aplicação da doutrina da desconsideração da pessoa jurídica, pois que se trata de tese largamente difundida na jurisprudência e doutrina brasileiras, e que só tem sido paulatinamente acolhida na legislação pátria.
O ilustre Magistrado Jorge Luis Costa Beber,69 estudioso da disregard ao explanar acerca da aplicação direta da disregard na execução alimentar, não encontra qualquer óbice para a sua aplicação na seara familiar, e acrescenta:
"Em especial no tocante aos alimentos, estimo ser perfeitamente viável o uso da teoria ora em exame, tanto na fase de cognição, como na execução, sobretudo nesta última, já que a constrição de bens para satisfação do débito alimentar se impõe cada vez mais como medida necessária e imprescindível, fruto do entendimento jurisprudencial vigente, contra o qual mantenho reservas pessoais, que limita a utilização da modalidade executiva prevista pelo artigo 733 do CPC."
Foi exatamente a decisão tomada por unanimidade na Ap. Civ. 598082162, da 7ª Câmara Cível do TJRS, sendo Relatora a Desembargadora Maria Berenice Dias.70
No seio do acórdão argumenta a Relatora Desembargadora Maria Berenice Dias:
"A conveniência de sua utilização no âmbito do Direito de Família já foi abordada por Rolf Madaleno, em seu artigo intitulado A disregard no Direito de Família, publicado na Revista Ajuris 57/57-66: O usual, dentro da teoria da despersonalização, é equiparar o sócio à sociedade e que dentro dela se esconde, para desconsiderar seu ato ou negócio fraudulento ou abusivo e, destarte, alcançar seu patrimônio pessoal, por obrigação da sociedade. Já no Direito de Família sua utilização dar-se-á de hábito, na via inversa, desconsiderando o ato, para alcançar bem da sociedade, para pagamento do cônjuge ou credor familial, principalmente frente à diuturna constatação nas disputas matrimoniais, de o cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, senão todo, ao menos o rol mais significativo dos bens comuns."
E nesta altura dos acontecimentos, já teríamos de ter aprendido que a elevada responsabilidade alimentar, que diz respeito à própria vida do credor, não pode ser barrada pelo singelo gesto de cerrar a porta da personalidade jurídica, como se fosse um território de completa imunidade judicial.
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NOTAS
1. SPOTA Alberto G. Tratado de derecho civil: derecho de família. Buenos Aires: Depalma, 1988, t. II, v. 3, p. 7/8.
2. Artigo 267 do Código Civil e artigo 2° da Lei 6.515/77.
3. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 7. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991, v. V, p. 116.
4. Tanto guarda este propósito protetivo em relação à mulher, considerada, à época, o ente mais frágil do casamento, que João Andrades Carvalho, na sua obra Regime de bens (Rio de Janeiro: Aide, 1996, p. 27), consigna fincar-se o princípio da imutabilidade na segurança, garantia e certeza de que a sociedade conjugal não é um sumidouro de direitos patrimoniais.
5. Ver MADALENO, Rolf. Efeito patrimonial da separação de fato. In: Direito de Família: aspectos polêmicos. Livraria do Advogado, 1988, p. 112: "Onde não há casamento não pode haver regime de bens, e se é o decreto separatório que liberta da coabitação, da fidelidade e da comunicação patrimonial, deve o julgador ser realista para deixar de julgar por ficção legal, esticando no espaço de sua sentença, obrigações e vínculos que os próprios cônjuges, ou mesmo os conviventes já abandonaram (...)." Em sentido contrário, Débora Gozzo, no seu livro Pacto antenupcial (São Paulo: Saraiva, 1992, p. 138) pondera que "enquanto os cônjuges estiverem separados somente de fato, o pacto antenupcial (entenda-se o regime de bens) continua a produzir seus efeitos até o momento em que uma sentença, prolatada em processo de separação judicial, acolha a pretensão do autor no sentido de pôr termo à sociedade conjugal. Este é o instante a partir do qual a eficácia do casamento cessa".
6. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p.71.
7. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo. São Paulo: RT, 1998, p. 301.
8. Idem, p. 302.
9. MALDONADO, Maria Tereza Casamento, término e reconstrução. Rio de Janeiro: Vozes, 1986, p. 116.
10. Sobre a dependência feminina, escreve Clara Coria, no seu livro O sexo oculto do dinheiro (Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997, p. 20); "As mudanças culturais que permitiram o acesso de algumas mulheres à educação e ao dinheiro não modificaram a situação de marginalidade nem as atitudes de subordinação em relação ao homem."
11. ZANN