Ser Pai

FILHO SAUDÁVEL, PAIS SAUDÁVEIS ?

Nem sempre. Pais problemáticos podem ter filhos sadios. E um casal pode se manter saudável à custa da doença de um filho. Ser bom pai, boa mãe, é um ideal muito arraigado entre nós. Tanto que, quando um filho não vai bem, os pais logo se preocupam em apresentar ao psicólogo uma espécie de atestado de boa paternidade. Chegam e vão dizendo: “o senhor mesmo pode ver. Temos quatro filhos. Os três primeiros são ótimos, saudáveis, vão bem na escola, praticam esportes, nunca nos deram dor de cabeça. Então, o que houve com este aqui ? Onde foi que nós erramos com ele, se com os outros acertamos tanto ?” No fim das contas, o que eles querem dizer é “aqui está nosso filho problemático. Culpa nossa não é”. Outro pedido muito comum que os pais fazem aos psicólogos é “diga-nos claramente como é que devemos agir. O que, diante desses problemas, devemos fazer ”.

E assim começam, às vezes, as decepções destes pais. Primeiro, porque é muito difícil conferir a alguém um atestado assim genérico de boa paternidade. Em segundo lugar, porque não existem regras de agir tão boas e tão mágicas que dispensem a revisão da relação pai-mãe-filho como um todo.

Porque o que existe é este triângulo pai-mãe-filho e, dentro dele, uma dinâmica de relacionamento que pode ser boa ou má, mas que é imprevisível. Com cada filho se estabelece uma relação diferente e com isso fica sem sentido um atestado genérico de boa paternidade. É mais útil que aquele pai e aquela mãe tentem descobrir, junto ao terapeuta, o que está havendo com o vínculo único e intransferível que eles têm com aquele filho.

Por isso não se pode dizer “também, claro, com aquele pai, aquela mãe, coitadinha daquela criança; só poderia ter saído assim”. Não é bem isso. Pode-se dizer, inclusive, que pais com um relacionamento conturbado entre si são capazes de ter, pessoalmente, uma boa relação com o filho. Por outro lado, pais harmoniosos podem ter um filho doente. Há casos até em que os pais só estão bem às custas de um filho que precisa cumprir o papel de doente da família.

Um semi-deus X um semi-idiota ?
Para tentar entender a dinâmica das relações do triângulo familiar, em cada caso é preciso perguntar quem são, como são esses pais ? que vida tiveram ? que influências receberam ? como foram seus pais ? em que circunstâncias se casaram ? O que representa a chegada deste filho na vida dos dois ?

É vendo estes três seres numa relação assim, dinâmica entre si – recebendo e irradiando mensagens uns para os outros além do que dizem e fazem – que se pode entender o que se passa entre eles. E são muitas as composições possíveis. Pensemos num casal satisfeito com seus dois filhos, que cumpriram as expectativas dos pais – são bons alunos, esportistas, alegres. Perfeitos, aos olhos dos pais. Nasce o terceiro filho. No começo, tudo bem. Mas a criança não consegue cumprir as exigências no mesmo nível. Embora tente fazer tudo certo, os repetidos insucessos a levam a uma crise de ansiedade porque os pais, até então afetivos, não conseguem suprir as necessidades desse filho.

Outra composição possível: os pais massacram um filho com altas expectativas, a que a criança se esforça por corresponder. Já os outros filhos, livres dessa pressão, podem achar mais facilmente o caminho de seu desenvolvimento.

Ou, então, um dos filhos pode atualizar para os pais experiências que não querem reviver, tornando-se como que o espelho de uma situação desagradável para os pais. Estes pais não querem agir mal com o filho. Nem a criança quer criar problemas para os pais. É a maneira de ser de cada um a causa das dificuldades.

Outro exemplo. Um casal aparentemente feliz, perfeito. E o filho inseguro, carente, nervoso, tentando controlar um, controlar outro, chantageando os dois. Ele percebe que os pais não vivem bem; aliás, há anos cada um faz sua vida fora de casa. Continuam juntos “por causa do filho”, que vive apavorado com o temor de que se separem, sentindo-se responsável pela união familiar. Há também o casal que, quando está bem, os filhos sobram. Parece que a criança não cabe na felicidade deles. Quando brigam, a relação com o filho melhora.

Estes poucos exemplos dão uma idéia de como podem ser variadas as composições de relação no triângulo familiar. Por isso é que, na prática, a boa relação com um filho não pode ser estabelecida com regras muito precisas. Ela é única, e depende de fatores nem sempre controláveis. Há pais lúcidos e organizados no trabalho, sábios com os amigos. Mas o que não podem é chegar em casa e dizer: ótimo, agora vamos ser lúcidos e sábios com nossos papéis de pais. Não dá. A relação em casa é diferente. Ela é total; entram afetos, entram atrações e resistências difíceis de prever, a pessoa é tocada no seu todo. Em casa ninguém engana. Pensa que engana. Os pais podem até decidir: brigamos, mas só no quarto; os filhos não precisam saber. Ora, na hora de perceber climas conjugais, o mais bobinho dos filhos conserta relógio com luvas de box.

A esta altura, suge uma questão importante. Se a relação com cada filho é única; se em sua dinâmica entram elementos até certo ponto impevisíveis; se ela não depende de regras fixas nem mesmo de boa vontade dos pais, então, diante dos problemas dos filhos, os pais nunca são culpados ?

É impossível negar que os pais sejam os adultos mais significativos e decisivos na vida do filho. Uma criança não estrutura sua personalidade a partir do nada. Mas é preciso distinguir culpa de responsabilidade. Na medida em que os pais são os adultos mais significativos da vida da criança, suas relações com ela serão fundamentais para seu crescimento. Só que essa não é uma relação de pais semi-deuses que tudo podem, tudo sabem, com uma criança semi-idiota que tudo recebe passivamente. Vai ser sempre uma relação de gente com gente, com seu componente de trocas e surpresas.

Certa idéia de culpa vem de uma posição onipotente da parte dos pais. “Nós determinamos como nosso filho vai ser. Se formos perfeitos, ele será perfeito”. Quando alguma coisa sai errada, claro que estes pais vão dizer: “o que foi que fizemos para que nosso filho tenha tal problema ?” leia mais

Quando o problema não é mais ou menos TV
Dentro de uma composição dinâmica de relações, pode-se dizer a esses pais algo nem sempre fácil de ouvir: o problema não é o que você faz, mas como você é; a questão não está em como você pensa que age, mas no que você transmite nessa relação. O pai é de um jeito tal que, combinado com o jeito tal da mãe, se estabelece com o filho tal tipo de relação. Os pais são responsáveis por essa dinâmica que surge ?

De certa forma são, e podem melhorá-la. Mas melhorar, aqui, não significa aprender novas formas de agir. Significa rever sua própria maneira de ser. Na medida em que os pais, por exemplo, se conhecem melhor e mudam as expectativas mútuas, a relação muda.

Colocar a questão desta maneira pode dar aos pais uma enorme sensação de impotência. Então, quando as coisas vão mal, ninguém pode lhes ensinar melhores formas de agir ? Em certo sentido, ninguém pode lhes ensinar mesmo. Porque, numa relação humana, nunca se lida apenas com uma forma de ação. Uma relação é um fenômeno muito mais amplo, envolvendo sentimentos, reações inconscientes, e a criança percebe toda essa parte obscura que acompanha a ação manifesta. Adianta ensinar aos pais maneiras de agir – não deixem a criança ver tanta televisão; não forcem a comida; brinquem mais com ela; sejam mais autoritários; sejam menos autoritários ? Adianta ensinar-lhes os melhores tons de dizer eu te adoro ?

No entanto, por falta de disposição de rever sua maneira mais profunda de ser, certos pais vivem sonhando com as melhores maneiras de agir. Parece que o maior sonho é como se tornar bons pais em 10 lições. E sempre a partir da questão: “o que eu devo fazer ?” Quando o ponto de partida é “como sou eu ? como é este meu filho ? o que é que, para além dos gestos e palavras, minha maneira de ser está passando para esta relação ?”

Muitas vezes, iludidos, os pais tentam mudanças de comportamento; se propõem a cumprir à risca um modelo idealizado. E a situação n]ao muda porque é uma conduta artificial. A relação continua comprometida. O desafio, portanto, é como eu devo me relacionar com meu filho de gente para gente e não como aprender as melhores maneiras de manipulá-lo de maneira mais correta. Isto se pode obter com a ajuda de um terapeuta de pais. Um profissional que, centrado nos interesses da criança – ou seja, envolvido indiretamente com os afetos da dinâmica – trabalhe as relações. Como decorrência desse trabalho, as crianças, que são extremamente plásticas em seu desenvolvimento, também são capazes de refazer sua maneira de ser. Quando isto não é possível, resta ainda a terapia da própria criança. Que também vai influir na relação dos pais.

Fonte: revista Psicologia Atual-Criança, ano V, nº 29 – dez/82

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