DIREITO DE VISITAS DOS AVÓS AOS NETOS
Ao discorrer sobre o estreito e natural vínculo de afeição entre os avós e os netos, como parte de uma convivência revestida de carinho e alegrias, afirma Edgard de Moura Bittencourt, com sabedoria e muita sensibilidade humana:
“A afeição dos avós pelos netos é a ultima etapa das paixões puras do homem. É a maior delícia de viver a velhice”.[i]
Nada mais verdadeiro. Ao dito popular, ser avô corresponde a “ser pai duas vezes”. Ou, como registra e comenta com maestria Roberto Damatta, em deliciosa crônica na imprensa paulista, “ser avô é ser pai com açúcar”, pois resulta “da vivência desse espaço que faz dos laços entre netos e avoengos algo terno e amistoso”, muito diferente da situação da figura paterna que exige respeito e submissão. Observa o articulista que “nenhum brasileiro precisa ler Freud e, especialmente, Lacan para saber que o ‘nome do pai’ sinaliza a autoridade civil, política e jurídica”, ao passo que a relação da criança com seus avós se exercita muito mais por prazer da amizade que os une. Finaliza suas considerações em tom filosófico, observando que ancestralidade “é uma terra situada num limite” e, para ser fértil, necessita de humildade e confiança, pois “a honra e o amor são os maiores presentes que podemos dar aos nossos descendentes”.[ii]
Essa visão intimista do relacionamento familiar serve de pano de fundo à questão do direito de visitas aos menores, que exige uma visão mais abrangente do que a mera regulamentação legal restrita aos contatos dos menores com o pai ou a mãe não encarregados da guarda, no caso de dissolução da sociedade conjugal ou de outra forma de convivência.
A consideração primeira é de que se busque a preservação da comunidade familiar em que se integra o menor, como parte do seu contexto de vida em sociedade. A esse respeito, determina a Constituição Federal de 1988, no artigo 227, que constitui dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, dentre outros direitos básicos, o direito à “convivência familiar e comunitária”. Na mesma toada dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069/90, no artigo 16, inciso V, com repetição no capítulo III, sob a rubrica “Do direito à convivência familiar e comunitária”. Também serve de suporte o conceito de “família natural”, inscrito na Constituição, artigo 226, § 4o, e no ECA, artigo 25, em resguardo à comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.
Não obstante esses preceitos maiores que asseguram a unidade do agrupamento familiar, a legislação específica sobre guarda de filhos e pátrio poder (ou poder familiar, na linguagem do novo Código Civil) mostra-se omissa na regulamentação da matéria.
O único dispositivo legal sobre visitas aos filhos encontra-se na Lei n. 6.515/77, que trata da separação judicial e do divórcio, assim dispondo o artigo 15: “Os pais, em cuja guarda não estejam os filhos, poderão visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo fixar o juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação”.
Observa-se que o direito paterno ou materno de ver os filhos e colaborar em sua manutenção e educação mantém-se como componente do pátrio poder, que subsiste com relação a ambos os genitores nos casos de dissolução da sociedade conjugal, e não apenas em favor do que detenha a guarda dos filhos menores. O mesmo se diga com respeito aos maiores incapazes que se sujeitem à curatela.
Em vista dessa normatização legal circunscrita apenas às relações paterno-filiais, levanta-se a questão de cabimento de visitas aos menores por outros membros de seu grupo familiar. Assim, no tocante aos avós, há quem sustente que não teriam direito assegurado de visitar os netos, por ausência de previsão desse direito na lei e, ainda, porque haveria uma indébita intromissão no pátrio poder, ou seja, naquela autoridade exercida exclusivamente pelos pais sobre a pessoa dos seus filhos menores.[iii]
Mas esse não é o melhor entendimento. Como bem afirma Washington de Barros Monteiro, “embora não consignado expressamente na sistemática das nossas leis que regulam as relações de família, evidente o direito dos avós de se avistarem com os netos em visita. Doutrina e jurisprudência confirmam ou aplaudem esse ponto de vista, que se funda na solidariedade familiar e nas obrigações oriundas do parentesco.” Ainda, nas palavras do saudoso mestre, “sem dúvida alguma, o direito dos avós se compreende hoje como decorrência do direito outorgado à criança e ao adolescente de gozarem de convivência familiar, não sendo demais entender que nesse relacionamento podem ser encontrados os elementos que caracterizam a família natural, formada por aquela comunidade familiar constituída de um dos pais e seus descendentes, inserida na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.”[iv]
Leva-se em conta múltiplo interesse: do menor, em manter-se integrado na comunidade familiar; dos pais, pela preservação do indispensável convívio com os ancestrais; e dos avós, na distribuição do seu natural afeto aos descendentes.
Esse direito de visitas dos avós subsiste em qualquer situação, ainda mesmo quando regular a convivência conjugal dos pais dos menores, muito embora tenda a se agravar e sofrer questionamentos nas hipóteses de deterioração do casamento, com a separação judicial ou o divórcio dos genitores, por força dos desentendimentos pessoais que muitas vezes se estendem aos próprios pais ou sogros.
Convém lembrar, em favor dos avós, que é exatamente nessas situações de conflito familiar, quando o filho mais sofre com a separação dos pais, que se revela útil a presença dos ascendentes mais longínquos, servindo como exemplo de subsistência da organização familiar e também contribuindo como precioso apoio ao filho que sofre as nocivas conseqüências da discórdia paterna.
Soam a contento as palavras de Moura Bittencourt, na obra antes citada: “Do lar, outrora unido, brotou o afeto dos avós e dos netos, que se separaram, sobretudo quando o genro ou nora é que leva consigo os filhos. Desse lar esfacelado nasceu uma situação inconveniente para os filhos, que se privam de ambiente saudável. A compreensão e o respeito recíproco que os pais, ou pelo menos um deles, não souberam manter, precisam ser substituídos pelo exemplo de outro lar. O mais próximo é o dos avós. Bem razoável, portanto, é que a companhia e a casa destes venham atenuar o vazio da vida sentimental que as crianças percebem e sofrem.”
A jurisprudência de nossos Tribunais tem se direcionado em favor do direito que têm os avós de se avistarem com os netos, ainda que essa forma de relacionamento não seja regulada em nossas leis de família. Foi como decidiu o Supremo Tribunal Federal, a servir de leading case sobre o tema: «Constitui princípio fundamental de moral familiar, sem qualquer desrespeito aos direitos paternos, a manutenção de relações de amizade e de um certo intercâmbio espiritual entre uma avó e sua neta menor, sendo odiosa e injusta qualquer oposição paterna, sem estar fundada em motivos sérios e graves; assim, constitui abuso do pátrio poder o impedimento, direto ou indireto, a que o ascendente mantenha estritas relações de visita com sua neta, procurando apagar nesta todo vestígio de sentimento pelos componentes da família de sua falecida mãe.» [v]
Nesse contexto, bem fundamentada decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relembrando precedente da mesma Câmara, de 04.10.84, por voto do eminente Des. Galeno Lacerda, a sublinhar que “embora o Código Civil não contemple, de modo expresso, o direito de visita entre avós e netos, esse direito resulta não apenas de princípios de direito natural, mas de imperativos do próprio sistema legal, que regula e admite essas relações, como em matéria de prestação de alimentos (art. 397), de tutela legal (art. 409, I) e de sucessão legítima (art. 1.603), além de outros preceitos. O direito dos avós de visitarem os netos e de serem por eles visitados, constitui, assim, corolário natural de um relacionamento afetivo e jurídico assente em lei” (RJTJRGS, 109/353). [vi]
Soma-se à jurisprudência o dominante entendimento doutrinário, como bem salienta Yussef Said Cahali, seguindo a orientação de que, “em face dos princípios que informam o Direito de Família, não se pode recusar aos avós, salvo razões graves baseadas no interesse superior dos menores, o direito de visitas aos netos.”[vii]
Assim, a falta de previsão legal específica não afasta esse direito, que decorre, como já apontamos, do princípio maior, assegurado na própria Constituição Federal, de que se deve garantir à criança e ao adolescente plena integração na comunidade familiar.
Demais disso, imperam em favor das relações de convivência entre os avós e os netos os fundamentos do direito natural e da solidariedade entre os membros da família, por isso que se afirma constituir um verdadeiro “direito moral” dos avós, o de se avistar com seus netos, dando-lhes assistência, carinho e afeto.[viii]
Com essa aproximação dos menores a um círculo familiar mais amplo não se atinge o pátrio poder dos genitores, mesmo porque a visitação, no caso, é exercida exatamente nesse limite de ver e estar com os menores, porém sem os acréscimos de poder fiscalizar ou participar da forma de criação dos netos, matéria que se limita ao detentor do pátrio poder.
Considere-se, por outro lado, que os avós, além de vinculados aos netos por laços de parentesco (ascendentes), mantêm com eles outros liames jurídicos de grande importância, por expressa determinação legal. Podem requerer ao juiz medidas de proteção ao menor no caso de abuso de poder por parte dos pais (artigo 394 do Código Civil), o que significa a possibilidade de acompanhar o desenvolvimento físico e moral do neto. Obrigam-se à prestação de alimentos ao neto, sempre que falte o genitor (artigo 397 do Código Civil). Podem nomear tutor ao neto, no caso de falta ou incapacidade dos pais (artigo 407 do Código Civil). São tutores legítimos preferenciais (artigo 409, I, do Código Civil). Posicionam-se na linha da vocação hereditária entre si e se qualificam como sucessores legítimos necessários (artigos 1.603 e 1.721 do Código Civil).
Nesse quadro circunstancial não faria sentido proibir visitação entre avós e netos, quando integrantes próximos da mesma constelação familiar, com direitos e obrigações recíprocos e por isso mesmo com tamanha vinculação jurídica nos planos pessoal e patrimonial.
Em reforço a lições doutrinárias, confiram-se os argumentos muito bem desenvolvidos por Guilherme Gonçalves Strenger, com citações de eminentes autores em favor do direito de visitas dos avós.[ix] Afirma sua concordância com Fábio Maria de Mattia, no afirmar que a natureza jurídica desse direito “está no fato de ser um direito natural”, e que se trata de “prerrogativa específica decorrente juris sanguinis que integrou aos outros direitos que a lei lhes atribui explicitamente com relação aos netos”.[x]
Em suma, a falta de estipulação expressa na lei, ante o limitativo preceito do artigo 15 da Lei do Divórcio, não afeta o direito de visitas dos avós aos netos, quando todo o sistema jurídico se inclina em favor dessa aproximação.
Necessário ressalvar, no entanto, que se deve levar em conta, sempre, o efetivo interesse do menor, princípio este que se aplica também na definição da guarda e visitas pelos genitores (artigo 10, § 2o, da Lei 6.515/77). Indispensável, portanto, que também as visitas por parte dos avós se condicionem ao bem-estar dos netos, servindo-lhes como efetivo apoio e aproveitamento moral, circunstâncias que o juiz haverá de pesquisar mediante cuidadosa investigação social no âmbito familiar. Significa dizer que, havendo motivos sérios e graves que desaconselhem as visitas, o juiz as suspenderá ou restringirá, para o fim de preservar os superiores interesses dos menores.
Na legislação comparada, cumpre anotar que o Código Civil Francês[xi] contempla expressamente a extensão do direito de visitas aos avós, conforme se lê do artigo 371-4 :
«O pai e a mâe não podem, salvo motivos graves, opor obstáculos às relações pessoais entre o menor e seus avós. Na falta de acordo entre as partes, essas relações serão regulamentadas pelo juiz de família .
Em caso de situações excepcionais, o juiz de família pode estabelecer um direito de correspondência ou de visita a outras pessoas, parentes ou não.»
Verifica-se o notável alcance desse dispositivo, que se aplica também à visitação do menor por outras pessoas de seu círculo familiar ou mesmo que não sejam parentes, sempre de acordo com as investigações procedidas pelo Juiz de Família, que, por outro lado, pode limitar os contatos ou mesmo circunscrevê-los ao direito de correspondência.
Também no moderno Código Civil Português[xii] (aprovado pelo Decreto-Lei n.47.344, de 15.11.66), colhe-se disposição similar, no artigo 1887-A (aditado pela Lei n. 84, de 31.8.95), com redação mais concisa:
«Os pais não podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos e ascendentes.»
O novo Código Civil brasileiro, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, com vigência aprazada para um ano depois de sua publicação, muito embora contenha relevantes disposições sobre a proteção da pessoa dos filhos e o exercício do «poder familiar », não traz norma específica sobre visitas pelos avós. O teor de seu artigo 1.589 é prática reprodução do artigo 15 da Lei n. 6.515/77, cuidando apenas do direito de visitas do pai ou da mãe, em cuja guarda não estejam os filhos.
Igual direito de visitas, no entanto, pode ser deferido a outras pessoas, mediante uma interpretação extensiva do artigo 1.584 do novo Código, que dispõe sobre a guarda dos filhos em casos de separação ou divórcio, estipulando que, na falta de acordo dos pais, o juiz concederá a guarda «a quem revelar melhores condições para exercê-la». A regra tem um sentido amplo e dá chance à entrega do menor até mesmo a outras pessoas, quando os pais não queiram ou não possam exercer a guarda. O mesmo princípio se aplica ao consectário direito de visitas, que pode ser ampliado em favor do pai que não detenha a guarda ou de outros parentes, desde que atendido o interesse do menor, objetivando sua perfeita integração dentro da comunidade familiar.
Por todas essas premissas, cabe concluir que, mesmo sem previsão legal expressa, nosso sistema jurídico assegura aos avós o salutar direito de visitas aos netos, mediante acordo com os pais ou por regulamentação afeta ao prudente arbítrio do juiz, em razão dos princípios maiores que informam os interesses da criança e do adolescente e para que se preserve sua necessária integração no núcleo familiar e na própria sociedade.
(São Paulo, 14.5.2002).
Notas:
[i] Edgard de Moura Bittencourt, Guarda de Filhos, Livraria Ed. Universitária de Direito, 1981, 2ªed, SP, págs. 123 a 124.
[ii] “Ave, avô”, artigo em O Estado de São Paulo, 10.01.2002, Caderno 2, D12.
[iii] Pela inadmissibilidade do direito de visitas pelos avós, ao entendimento de que se trata de direito privativo dos pais, acórdão da 1a. Câm. do Tribunal de Justiça de São Paulo, na ap. cível n. 14.043-1, rel. Des. Galvão Coelho, j. em 17.10.81, publicado na RJTJESP 75/120.
[iv] Curso de Direito Civil, Direito de Família, vol. 2, Ed. Saraiva, 1997, 34ª ed., SP, pág. 235.
[v] Acórdão citado por Moura Bittencourt, em Guarda de Filhos, op. cit., pág. 125, com menção a publicações da RT 194/478,187/892 e 205/528. Desta última publicação colhe-se precioso acórdão do Tribunal de Justiça do antigo Distrito Federal, assim fundamentado: “O direito de visitas aos netos decorre da própria organização da família, sendo seus fundamentos a solidariedade de seus membros para a qual concorre em grande parte a convivência mais ou menos intensa e também as obrigações impostas pela lei, como as a que se referem os artigos 396 e 397 do Código Civil. Repugna ao direito não tenham os avós senão obrigações e encargos como o de prestação de alimentos aos descendentes. Não organização da família, os direitos e deveres são, em regra, recíprocos e nem poderão deixar de assim ser em virtude da solidariedade, que deve ser mantida de forma mais intensa, segundo os graus de parentesco”.
[vi] TJRGS, Agravo de instrumento nº 590007191, 3a. câmara cível, Relator Des. Flávio Pâncaro da Silva, participaram do julgamento, também, o Des. Balduino Manica e Des. Cezar Tasso Gomes, votação unânime, 29 de março de 1990.
[vii] Divórcio e Separação, 9ª ed., Ed. Revistas dos tribunais, 2000, SP, págs. 951 a 957, com citação, também, de farta jurisprudência.
[viii] Note-se que a falta de previsão legal específica não afasta a aplicação de certas normas de proteção às pessoas, especialmente no Direito de Família. O que prevalece neste ramo do Direito são normas de âmbito moral, em subsídio ao ordenamento positivo, sem que necessário buscar-lhe apoio em um conteúdo estritamente jurídico. Disse-o bem, em primorosa declaração de voto vencido no Mandado de Segurança n. 261.788-1, o Des. Fonseca Tavares, invocando lição doutrinária de Jean Carbonnier, para quem os princípios que regem as relações de ordem familiar chegam melhor a constituir-se naquilo que denomina de “não direito” (JTJ 175/130).
[ix] Guarda de Filhos, LTr, 1998, SP, págs. 79 a 85.
[x] “Direito de visita de avô”, Revista de Direito Civil, n. 15, págs. 15 a22.
[xi] Code Civil, 99a. ed., Dalloz, 2000, Paris, França.
[xii] Código Civil, Coimbra Editora, 1999.
FONTE: http://www.gontijo-familia.adv.br/
“A afeição dos avós pelos netos é a ultima etapa das paixões puras do homem. É a maior delícia de viver a velhice”.[i]
Nada mais verdadeiro. Ao dito popular, ser avô corresponde a “ser pai duas vezes”. Ou, como registra e comenta com maestria Roberto Damatta, em deliciosa crônica na imprensa paulista, “ser avô é ser pai com açúcar”, pois resulta “da vivência desse espaço que faz dos laços entre netos e avoengos algo terno e amistoso”, muito diferente da situação da figura paterna que exige respeito e submissão. Observa o articulista que “nenhum brasileiro precisa ler Freud e, especialmente, Lacan para saber que o ‘nome do pai’ sinaliza a autoridade civil, política e jurídica”, ao passo que a relação da criança com seus avós se exercita muito mais por prazer da amizade que os une. Finaliza suas considerações em tom filosófico, observando que ancestralidade “é uma terra situada num limite” e, para ser fértil, necessita de humildade e confiança, pois “a honra e o amor são os maiores presentes que podemos dar aos nossos descendentes”.[ii]
Essa visão intimista do relacionamento familiar serve de pano de fundo à questão do direito de visitas aos menores, que exige uma visão mais abrangente do que a mera regulamentação legal restrita aos contatos dos menores com o pai ou a mãe não encarregados da guarda, no caso de dissolução da sociedade conjugal ou de outra forma de convivência.
A consideração primeira é de que se busque a preservação da comunidade familiar em que se integra o menor, como parte do seu contexto de vida em sociedade. A esse respeito, determina a Constituição Federal de 1988, no artigo 227, que constitui dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, dentre outros direitos básicos, o direito à “convivência familiar e comunitária”. Na mesma toada dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069/90, no artigo 16, inciso V, com repetição no capítulo III, sob a rubrica “Do direito à convivência familiar e comunitária”. Também serve de suporte o conceito de “família natural”, inscrito na Constituição, artigo 226, § 4o, e no ECA, artigo 25, em resguardo à comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.
Não obstante esses preceitos maiores que asseguram a unidade do agrupamento familiar, a legislação específica sobre guarda de filhos e pátrio poder (ou poder familiar, na linguagem do novo Código Civil) mostra-se omissa na regulamentação da matéria.
O único dispositivo legal sobre visitas aos filhos encontra-se na Lei n. 6.515/77, que trata da separação judicial e do divórcio, assim dispondo o artigo 15: “Os pais, em cuja guarda não estejam os filhos, poderão visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo fixar o juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação”.
Observa-se que o direito paterno ou materno de ver os filhos e colaborar em sua manutenção e educação mantém-se como componente do pátrio poder, que subsiste com relação a ambos os genitores nos casos de dissolução da sociedade conjugal, e não apenas em favor do que detenha a guarda dos filhos menores. O mesmo se diga com respeito aos maiores incapazes que se sujeitem à curatela.
Em vista dessa normatização legal circunscrita apenas às relações paterno-filiais, levanta-se a questão de cabimento de visitas aos menores por outros membros de seu grupo familiar. Assim, no tocante aos avós, há quem sustente que não teriam direito assegurado de visitar os netos, por ausência de previsão desse direito na lei e, ainda, porque haveria uma indébita intromissão no pátrio poder, ou seja, naquela autoridade exercida exclusivamente pelos pais sobre a pessoa dos seus filhos menores.[iii]
Mas esse não é o melhor entendimento. Como bem afirma Washington de Barros Monteiro, “embora não consignado expressamente na sistemática das nossas leis que regulam as relações de família, evidente o direito dos avós de se avistarem com os netos em visita. Doutrina e jurisprudência confirmam ou aplaudem esse ponto de vista, que se funda na solidariedade familiar e nas obrigações oriundas do parentesco.” Ainda, nas palavras do saudoso mestre, “sem dúvida alguma, o direito dos avós se compreende hoje como decorrência do direito outorgado à criança e ao adolescente de gozarem de convivência familiar, não sendo demais entender que nesse relacionamento podem ser encontrados os elementos que caracterizam a família natural, formada por aquela comunidade familiar constituída de um dos pais e seus descendentes, inserida na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.”[iv]
Leva-se em conta múltiplo interesse: do menor, em manter-se integrado na comunidade familiar; dos pais, pela preservação do indispensável convívio com os ancestrais; e dos avós, na distribuição do seu natural afeto aos descendentes.
Esse direito de visitas dos avós subsiste em qualquer situação, ainda mesmo quando regular a convivência conjugal dos pais dos menores, muito embora tenda a se agravar e sofrer questionamentos nas hipóteses de deterioração do casamento, com a separação judicial ou o divórcio dos genitores, por força dos desentendimentos pessoais que muitas vezes se estendem aos próprios pais ou sogros.
Convém lembrar, em favor dos avós, que é exatamente nessas situações de conflito familiar, quando o filho mais sofre com a separação dos pais, que se revela útil a presença dos ascendentes mais longínquos, servindo como exemplo de subsistência da organização familiar e também contribuindo como precioso apoio ao filho que sofre as nocivas conseqüências da discórdia paterna.
Soam a contento as palavras de Moura Bittencourt, na obra antes citada: “Do lar, outrora unido, brotou o afeto dos avós e dos netos, que se separaram, sobretudo quando o genro ou nora é que leva consigo os filhos. Desse lar esfacelado nasceu uma situação inconveniente para os filhos, que se privam de ambiente saudável. A compreensão e o respeito recíproco que os pais, ou pelo menos um deles, não souberam manter, precisam ser substituídos pelo exemplo de outro lar. O mais próximo é o dos avós. Bem razoável, portanto, é que a companhia e a casa destes venham atenuar o vazio da vida sentimental que as crianças percebem e sofrem.”
A jurisprudência de nossos Tribunais tem se direcionado em favor do direito que têm os avós de se avistarem com os netos, ainda que essa forma de relacionamento não seja regulada em nossas leis de família. Foi como decidiu o Supremo Tribunal Federal, a servir de leading case sobre o tema: «Constitui princípio fundamental de moral familiar, sem qualquer desrespeito aos direitos paternos, a manutenção de relações de amizade e de um certo intercâmbio espiritual entre uma avó e sua neta menor, sendo odiosa e injusta qualquer oposição paterna, sem estar fundada em motivos sérios e graves; assim, constitui abuso do pátrio poder o impedimento, direto ou indireto, a que o ascendente mantenha estritas relações de visita com sua neta, procurando apagar nesta todo vestígio de sentimento pelos componentes da família de sua falecida mãe.» [v]
Nesse contexto, bem fundamentada decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relembrando precedente da mesma Câmara, de 04.10.84, por voto do eminente Des. Galeno Lacerda, a sublinhar que “embora o Código Civil não contemple, de modo expresso, o direito de visita entre avós e netos, esse direito resulta não apenas de princípios de direito natural, mas de imperativos do próprio sistema legal, que regula e admite essas relações, como em matéria de prestação de alimentos (art. 397), de tutela legal (art. 409, I) e de sucessão legítima (art. 1.603), além de outros preceitos. O direito dos avós de visitarem os netos e de serem por eles visitados, constitui, assim, corolário natural de um relacionamento afetivo e jurídico assente em lei” (RJTJRGS, 109/353). [vi]
Soma-se à jurisprudência o dominante entendimento doutrinário, como bem salienta Yussef Said Cahali, seguindo a orientação de que, “em face dos princípios que informam o Direito de Família, não se pode recusar aos avós, salvo razões graves baseadas no interesse superior dos menores, o direito de visitas aos netos.”[vii]
Assim, a falta de previsão legal específica não afasta esse direito, que decorre, como já apontamos, do princípio maior, assegurado na própria Constituição Federal, de que se deve garantir à criança e ao adolescente plena integração na comunidade familiar.
Demais disso, imperam em favor das relações de convivência entre os avós e os netos os fundamentos do direito natural e da solidariedade entre os membros da família, por isso que se afirma constituir um verdadeiro “direito moral” dos avós, o de se avistar com seus netos, dando-lhes assistência, carinho e afeto.[viii]
Com essa aproximação dos menores a um círculo familiar mais amplo não se atinge o pátrio poder dos genitores, mesmo porque a visitação, no caso, é exercida exatamente nesse limite de ver e estar com os menores, porém sem os acréscimos de poder fiscalizar ou participar da forma de criação dos netos, matéria que se limita ao detentor do pátrio poder.
Considere-se, por outro lado, que os avós, além de vinculados aos netos por laços de parentesco (ascendentes), mantêm com eles outros liames jurídicos de grande importância, por expressa determinação legal. Podem requerer ao juiz medidas de proteção ao menor no caso de abuso de poder por parte dos pais (artigo 394 do Código Civil), o que significa a possibilidade de acompanhar o desenvolvimento físico e moral do neto. Obrigam-se à prestação de alimentos ao neto, sempre que falte o genitor (artigo 397 do Código Civil). Podem nomear tutor ao neto, no caso de falta ou incapacidade dos pais (artigo 407 do Código Civil). São tutores legítimos preferenciais (artigo 409, I, do Código Civil). Posicionam-se na linha da vocação hereditária entre si e se qualificam como sucessores legítimos necessários (artigos 1.603 e 1.721 do Código Civil).
Nesse quadro circunstancial não faria sentido proibir visitação entre avós e netos, quando integrantes próximos da mesma constelação familiar, com direitos e obrigações recíprocos e por isso mesmo com tamanha vinculação jurídica nos planos pessoal e patrimonial.
Em reforço a lições doutrinárias, confiram-se os argumentos muito bem desenvolvidos por Guilherme Gonçalves Strenger, com citações de eminentes autores em favor do direito de visitas dos avós.[ix] Afirma sua concordância com Fábio Maria de Mattia, no afirmar que a natureza jurídica desse direito “está no fato de ser um direito natural”, e que se trata de “prerrogativa específica decorrente juris sanguinis que integrou aos outros direitos que a lei lhes atribui explicitamente com relação aos netos”.[x]
Em suma, a falta de estipulação expressa na lei, ante o limitativo preceito do artigo 15 da Lei do Divórcio, não afeta o direito de visitas dos avós aos netos, quando todo o sistema jurídico se inclina em favor dessa aproximação.
Necessário ressalvar, no entanto, que se deve levar em conta, sempre, o efetivo interesse do menor, princípio este que se aplica também na definição da guarda e visitas pelos genitores (artigo 10, § 2o, da Lei 6.515/77). Indispensável, portanto, que também as visitas por parte dos avós se condicionem ao bem-estar dos netos, servindo-lhes como efetivo apoio e aproveitamento moral, circunstâncias que o juiz haverá de pesquisar mediante cuidadosa investigação social no âmbito familiar. Significa dizer que, havendo motivos sérios e graves que desaconselhem as visitas, o juiz as suspenderá ou restringirá, para o fim de preservar os superiores interesses dos menores.
Na legislação comparada, cumpre anotar que o Código Civil Francês[xi] contempla expressamente a extensão do direito de visitas aos avós, conforme se lê do artigo 371-4 :
«O pai e a mâe não podem, salvo motivos graves, opor obstáculos às relações pessoais entre o menor e seus avós. Na falta de acordo entre as partes, essas relações serão regulamentadas pelo juiz de família .
Em caso de situações excepcionais, o juiz de família pode estabelecer um direito de correspondência ou de visita a outras pessoas, parentes ou não.»
Verifica-se o notável alcance desse dispositivo, que se aplica também à visitação do menor por outras pessoas de seu círculo familiar ou mesmo que não sejam parentes, sempre de acordo com as investigações procedidas pelo Juiz de Família, que, por outro lado, pode limitar os contatos ou mesmo circunscrevê-los ao direito de correspondência.
Também no moderno Código Civil Português[xii] (aprovado pelo Decreto-Lei n.47.344, de 15.11.66), colhe-se disposição similar, no artigo 1887-A (aditado pela Lei n. 84, de 31.8.95), com redação mais concisa:
«Os pais não podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos e ascendentes.»
O novo Código Civil brasileiro, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, com vigência aprazada para um ano depois de sua publicação, muito embora contenha relevantes disposições sobre a proteção da pessoa dos filhos e o exercício do «poder familiar », não traz norma específica sobre visitas pelos avós. O teor de seu artigo 1.589 é prática reprodução do artigo 15 da Lei n. 6.515/77, cuidando apenas do direito de visitas do pai ou da mãe, em cuja guarda não estejam os filhos.
Igual direito de visitas, no entanto, pode ser deferido a outras pessoas, mediante uma interpretação extensiva do artigo 1.584 do novo Código, que dispõe sobre a guarda dos filhos em casos de separação ou divórcio, estipulando que, na falta de acordo dos pais, o juiz concederá a guarda «a quem revelar melhores condições para exercê-la». A regra tem um sentido amplo e dá chance à entrega do menor até mesmo a outras pessoas, quando os pais não queiram ou não possam exercer a guarda. O mesmo princípio se aplica ao consectário direito de visitas, que pode ser ampliado em favor do pai que não detenha a guarda ou de outros parentes, desde que atendido o interesse do menor, objetivando sua perfeita integração dentro da comunidade familiar.
Por todas essas premissas, cabe concluir que, mesmo sem previsão legal expressa, nosso sistema jurídico assegura aos avós o salutar direito de visitas aos netos, mediante acordo com os pais ou por regulamentação afeta ao prudente arbítrio do juiz, em razão dos princípios maiores que informam os interesses da criança e do adolescente e para que se preserve sua necessária integração no núcleo familiar e na própria sociedade.
(São Paulo, 14.5.2002).
Notas:
[i] Edgard de Moura Bittencourt, Guarda de Filhos, Livraria Ed. Universitária de Direito, 1981, 2ªed, SP, págs. 123 a 124.
[ii] “Ave, avô”, artigo em O Estado de São Paulo, 10.01.2002, Caderno 2, D12.
[iii] Pela inadmissibilidade do direito de visitas pelos avós, ao entendimento de que se trata de direito privativo dos pais, acórdão da 1a. Câm. do Tribunal de Justiça de São Paulo, na ap. cível n. 14.043-1, rel. Des. Galvão Coelho, j. em 17.10.81, publicado na RJTJESP 75/120.
[iv] Curso de Direito Civil, Direito de Família, vol. 2, Ed. Saraiva, 1997, 34ª ed., SP, pág. 235.
[v] Acórdão citado por Moura Bittencourt, em Guarda de Filhos, op. cit., pág. 125, com menção a publicações da RT 194/478,187/892 e 205/528. Desta última publicação colhe-se precioso acórdão do Tribunal de Justiça do antigo Distrito Federal, assim fundamentado: “O direito de visitas aos netos decorre da própria organização da família, sendo seus fundamentos a solidariedade de seus membros para a qual concorre em grande parte a convivência mais ou menos intensa e também as obrigações impostas pela lei, como as a que se referem os artigos 396 e 397 do Código Civil. Repugna ao direito não tenham os avós senão obrigações e encargos como o de prestação de alimentos aos descendentes. Não organização da família, os direitos e deveres são, em regra, recíprocos e nem poderão deixar de assim ser em virtude da solidariedade, que deve ser mantida de forma mais intensa, segundo os graus de parentesco”.
[vi] TJRGS, Agravo de instrumento nº 590007191, 3a. câmara cível, Relator Des. Flávio Pâncaro da Silva, participaram do julgamento, também, o Des. Balduino Manica e Des. Cezar Tasso Gomes, votação unânime, 29 de março de 1990.
[vii] Divórcio e Separação, 9ª ed., Ed. Revistas dos tribunais, 2000, SP, págs. 951 a 957, com citação, também, de farta jurisprudência.
[viii] Note-se que a falta de previsão legal específica não afasta a aplicação de certas normas de proteção às pessoas, especialmente no Direito de Família. O que prevalece neste ramo do Direito são normas de âmbito moral, em subsídio ao ordenamento positivo, sem que necessário buscar-lhe apoio em um conteúdo estritamente jurídico. Disse-o bem, em primorosa declaração de voto vencido no Mandado de Segurança n. 261.788-1, o Des. Fonseca Tavares, invocando lição doutrinária de Jean Carbonnier, para quem os princípios que regem as relações de ordem familiar chegam melhor a constituir-se naquilo que denomina de “não direito” (JTJ 175/130).
[ix] Guarda de Filhos, LTr, 1998, SP, págs. 79 a 85.
[x] “Direito de visita de avô”, Revista de Direito Civil, n. 15, págs. 15 a22.
[xi] Code Civil, 99a. ed., Dalloz, 2000, Paris, França.
[xii] Código Civil, Coimbra Editora, 1999.
FONTE: http://www.gontijo-familia.adv.br/