Análises

A FIGURA PATERNA

Reflexões com base em alguns filmes de nosso repertório recente, onde a “figura paterna” vem sendo questionada, buscada, amada, odiada, perdida.


“Pai” todo mundo acha que sabe o que é. Mas não é bem assim. “Pai” vem de “pater”, parece que por desconstrução infantil durante a formação do latim vulgar na Ibéria e depois da língua portuguesa (segundo o Houaiss), no século XIII. Acontece que no latim “pater” designava mais uma função simbólica, de “formador da origem”, como em “pater familia”, enquanto que o “pai” no sentido biológico era o “parens”, ou o “genitor”. Daí que antigamente se rezava o “Padre Nosso” e hoje se esquece cada vez mais o “Pai Nosso”.
Já “figura” é uma palavra de raiz e família muito complexas. Tem a ver com o verbo latino “fingere” que quer dizer “modelar em argila” e argila era “figulus”. A família da palavra inclui “efígie”, de uma tradução latina do grego “eidolon”, que deu ídolo; inclui também “fingir” e “ficção”, de “fictio”, criação, invenção.

Em português moderno “figura” se refere à forma externa de um corpo, a seu espelhamento na linguagem, nas artes, ou através de um esquema geométrico ou matemático. Simbolicamente, “figura” espelha um objeto cuja referência está em outra parte; ela contém em si simultaneamente uma presença e uma ausência. Assim é com toda a palavra; mas a palavra figura “configura”, por assim dizer, essa estranha propriedade da linguagem no mundo da cultura. Talvez a melhor versão dessa propriedade seja a palavra “figurino”, que tem ao mesmo tempo a acepção de roupa, modelo, desenho e indumentária teatral.

“Figura” pode também ter a conotação de algo “pouco nítido”, cuja forma ou feição não podemos distinguir com precisão. Neste sentido “figura” se aproxima do sentido de uma “aparição”. Pois esse é o sentido, sem esquecer os comentários anteriores, que melhor se casa com o título desse artigo. E o seu motivo (do artigo) são as reflexões deste carnavalesco doméstico (eu mesmo), que sempre fez, faz e fará uma triste figura no reinado de Momo. Essas reflexões tiveram por base alguns filmes de nosso repertório recente, onde a “figura paterna” vem sendo questionada, buscada, amada, odiada, perdida.

Em três deles isso é evidente: são eles “Invasões Bárbaras”, de Denis Arcand; “Adeus Lênin”, de Wolfgang Becker; e mais recentemente “Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas”, de Tim Burton. São três filmes muito diferentes entre si, tanto do ponto de vista estético quanto cultural, psicológico e sociopolítico. “Invasões Bárbaras” é mais dramático; “Adeus Lênin””, mais irônico; “Peixe Grande”, mais sentimental. Mas os três têm muito em comum. Em todos os três há filhos que recebem uma herança de seu mundo de origem (no caso de “Adeus Lênin” através da mãe, que substitui o pai desaparecido e depois reencontrado). Em todos os três os filhos não sabem o que fazer com essa herança, que é ao mesmo tempo uma dádiva e uma maldição; e em todos os três os filhos, que na verdade são os heróis da trama, tentam recompor e recriar um sentido para essa herança através de uma narração (no caso de “Invasões bárbaras” através de uma encenação da vida pregressa do pai com as visitas dos amigos e das amantes de antanho).

Em todos os três filmes os pais são figuras ausentes e presentes, até mesmo pela falta (no caso de “Adeus Lênin”) e pelo reencontro posterior. Nos três casos os pais são aventureiros, mesmo que pela fuga e pelo abandono, que não deixa de ter algo de covardia, no caso de “Adeus Lênin”. Em todos os casos os pais são figuras pouco nítidas para os filhos. No caso de “Adeus Lênin” a figura algo quixotesca e heróica da mãe substitui, vicariamente, a imagem do pai provedor que desapareceu, ou melhor, foi viver literalmente do outro lado do muro. Esses filhos são homens de sucesso; um gerente financeiro (“Invasões Bárbaras”), um jornalista (“Peixe grande”), um jovem sobrevivente num mundo hostil, de todos os três o mais heróico. E em todos os três filmes são jovens que não têm e devem recuperar a capacidade de se apaixonar profundamente pela vida.

Nos três filmes a corrupção ou é ou se torna algo corriqueiro, assim como o apetite por dinheiro ou pelo consumo. O caso mais patético deste traço comum é o do padre em “Invasões Bárbaras” que não sabe o que fazer com as imagens de santos que herdou do catolicismo conservador no Québec e se deprime ao saber que elas não têm qualquer valor de mercado. Em todos os três a figura individual e a ação individuais borram-se e vão desaparecendo, dando lugar a uma multidão de fantasmas com vagas formas semelhantes a seres humanos. Em todos os três, e aqui está um traço fundamental desta paisagem, o Estado é um ilustre ausente, ou um personagem que desmorona, cuja falta deve ser compensada por uma mera “ética da sobrevivência”. Dos três, o caso mais irônico é o de “Peixe Grande”, e esta ausência aparece tanto no banco roubado por seus clientes, antes de sê-lo pelo ladrão, e pela cidade que sucumbe à desorganização da economia. E em todos os três filmes nada é o que aparenta ser: tudo é o contrário do que parece; o caso mais radical deste acobertamento de significados está em “Invasões Bárbaras”, onde o filho acha que está apaixonado mas descobre na jovem drogada o que pode ser o portal de uma verdadeira paixão.

Mas falei de cinco filmes, e não apenas de três. Estão faltando em minha relação os brasileiros “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, e “O Homem que Copiava”, de Jorge Furtado. Nestes dois, a figura paterna é simplesmente derrogada (“Cidade de Deus”) ou, quando existe (“O Homem que Copiava”), não deveria existir, sendo uma figura vicária (o padrasto cínico). Quanto à ausência do Estado, nem é bom falar, de tanta vergonha que dá. Também nestes filmes há um esforço narrativo para construir algum sentido, uma adesão a esta “ética” ou “antiética da sobrevivência”, e uma tentativa de reconstruir uma paixão pela vida.

Nos dois filmes, e aqui talvez haja um traço mais característico da sociedade brasileira (ou latino-americana?) a ausência paterna e do Estado é substituída pela tentativa de construir “frátrias” de identidade. Ao desmoronamento da família sucede a eleição do “bando” ou da “tribo” como sucedâneos do núcleo desaparecido (Maria Rita Kehl organizou um livro sobre este assunto: “A Função Fraterna”). No caso de “O Homem que Copiava” há uma citação mítica da figura paterna na evocação de Paulo José ao lado do Cristo Redentor, o que retoma traços mitológicos constantes da cultura gaúcha: a viagem ao Rio de Janeiro, e o personagem (no caso um ator) precursor que, por falta de condições no meio, “se exila” alhures.

Esses filmes dão o que pensar: há neles uma perda e uma busca. Sempre que a figura paterna entre em questionamento, há uma necessidade de releitura das origens e de seu princípio de fundação. Não era outro o destino de Édipo na pólis grega. Confrontados pela perda da dimensão dos valores de uma sociedade agrária e arcaica, pressionados por novos tempos e os novos valores de uma sociedade progressivamente mercantil, pela substituição dos antigos acordos patrícios pela emergência dos tiranos populares e “populistas”, pela penetração dos estrangeiros na vida de Atenas, Sófocles e seu personagem Édipo empreendem a viagem da releitura do antigo mito dos Labdácidas na mítica Tebas de antanho. Refundaram a pólis? Não se sabe; mas sabemos que somos os herdeiros dessa viagem.

No caso brasileiro vivemos a derrogação da figura paterna dramaticamente na desagregação familiar nas periferias mas também nas mansões burguesas e casas de classe média. Vivemo-la dramaticamente na derrogação da figura normativa do Estado em troca do império desregulador dos mercados. Perplexos, os de esquerda assistimos a desconstrução dos mitológicos “Brasil, país do futuro” e do “Pai dos pobres” correlato, com que emergimos para a modernidade. Mas essa desconstrução acabou se dando, na linguagem homogênea que se tenta impor, não na direção de uma visão mais aguçada da realidade e dos sonhos de que seríamos capazes. Ao contrário, deu-se na direção do pesadelo depressivo da falta de alternativas à realpolitik que se quer impor com o primado da economia e do economês, a quem nem os partidos de esquerda escaparam. E o que vemos hoje é um esforço enorme da direita para recompor-se do impasse a que chegou pela renúncia à libertação do país de seu passado de miséria; enquanto a esquerda pratica políticas compensatórias: políticas compensatórias no plano social e de sua própria falta de ousadia no plano político.

Tudo isso nos mostra o impasse que temos de enfrentar, os de esquerda, ao invés desse engalfinhamento da esquerda da esquerda contra a direita da esquerda e do centro da esquerda contra a esquerda do centro, dessa “ética” ou “antiética da sobrevivência” política que pode nos levar ao dilúvio ou à seca universais. Esse impasse é o de recolocar no plano político a paixão transformadora (não a obsessão reformista ou sectária) e partir da constatação de que sim, é verdade, conseguiu-se a abolição, mesmo que temporária, do nosso mito sebastianista do “Pai dos pobres”. Mas isto apenas significou que os ricos se aboletaram nas suas frátrias empresariais. Os pobres, esses ficaram sem pai nem mãe.

Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.

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