Análises

PATERNIDADE AINDA É TABU NO BRASIL

ENTREVISTA EXCLUSIVA

“Paternidade ainda é tabu no Brasil”, diz socióloga
Ana Liése Thurler, autora de uma pesquisa que revelou que 30% das crianças brasileiras não têm o nome do pai em seus registros, afirma que ainda há fortes marcas de sexismo no país, que permitem que o homem se exima da responsabilidade de assumir seus filhos.
Thaís Conesa 10/02/2005


São Paulo – A falta de reconhecimento da paternidade revelou-se um dos maiores problemas do Brasil. Segundo a pesquisa “Paternidade e Deserção, Crianças sem Reconhecimento e Maternidades Penalizadas pelo Sexismo”, realizada pela socióloga Ana Liési Thurler, cerca de 30% das crianças brasileiras não têm o nome do pai em seus registros. O estudo, baseado na análise de mais de 180 mil certidões, mostrou ainda que os meninos e meninas registrados com pai desconhecidos tendem a continuar nesta condição para sempre. Uma das explicações para este problema, segundo Ana, são as fortes marcas do sexismo ainda presentes na sociedade brasileira, que permitem que o homem se exima da responsabilidade de assumir e criar seus filhos.

Em outubro do ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou uma súmula (301) que reconhece que a recusa em fazer o teste de DNA é presunção da paternidade. A decisão, para a socióloga, significa um avanço na medida em que tira da mulher o ônus da prova da paternidade e promove a igualdade entre as palavras da mãe e do pai no momento de reconhecer a paternidade.

Nesta entrevista exclusiva à Carta Maior, Ana Liési Thurler fala deste tabu brasileiro e dos projetos dos Ministérios Públicos do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e da Bahia (MPBA), que promovem o reconhecimento de paternidade para crianças da rede pública. Os dados do MPDFT indicam que no último mutirão feito nas escolas, 534 mães foram notificadas para buscar a paternidade de seus filhos, sendo que 270 buscaram o atendimento do Ministério Público. Foram feitas 111 investigações preliminares buscando os pais e 37 crianças tiveram a paternidade reconhecida.


Carta Maior: Sua pesquisa mostrou que 30% das crianças nascidas anualmente no Brasil não têm filiação paterna estabelecida. A paternidade ainda é um tabu na nossa sociedade?
Ana Liési Thurler: Nenhuma instituição produz dados sobre o pai brasileiro. Reconhecendo suas crianças ou, menos ainda, não as reconhecendo, o pai brasileiro é um grande enigma. Há uma forte blindagem em torno dele. Por extensão, também sobre pessoas sem reconhecimento paterno. É um assunto tabu, sobre o qual não só as instituições calam. Para nós, integrantes de uma sociedade democrática, deveria causar constrangimento político a convivência com essa realidade. No desenvolvimento da pesquisa constatei que as pessoas têm também grande dificuldade em falar: as mulheres-mães, as crianças e adolescentes, os próprios homens-pais aí implicados. Para quase todos, o tema causa constrangimento psicológico, vergonha e, para muitas pessoas, sofrimento.

CM: Que relação pode ser estabelecida entre a cidadania e o reconhecimento de paternidade?
AT: Os índices de não reconhecimento paterno expõem o próprio padrão de cidadania predominante em uma sociedade, que pode ser medido pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Em 2003, na França, o IDH foi de 0.932 (16º lugar geral) e o índice de não-reconhecimento paterno estava em torno de 2%. No Brasil, o IDH foi de 0,775 (72º lugar geral) e o índice de não reconhecimento paterno gravitou em torno de 30%.

CM: Quais são os fatores que levam ao não-reconhecimento da paternidade e eles podem ser combatidos?
AT: A deserção da paternidade, materializada em registros civis de nascimento sem filiação paterna estabelecida, foi socialmente produzida pelas vias histórica, política, cultural e mesmo jurídica. O não reconhecimento da paternidade é uma prática não-democrática e sexista que, no século XXI, nos dá notícias do patriarca de idos tempos, que controlava sua descendência acolhendo ou repudiando os filhos, arbitrariamente. O pai desertor não nos coloca, portanto, uma questão pessoal, individual. Assim como, por meio do jogo de relações sociais nós o construímos e naturalizamos, podemos também coletivamente desconstruí-lo e desnaturalizá-lo.

CM: O poder público tem trabalhado neste sentido?
AT: Nestes últimos vinte anos, tivemos, de um lado, a promulgação da Constituição de 88, afirmando os direitos fundamentais como princípios e objetivos. O dever de ação do Estado foi provocado. Por outro lado, a Lei da Paternidade (Lei 8.590, de 29 de dezembro de 1982), reconhece que a paternidade se realiza em uma rede de relações sociais, na polis e acentua seu caráter de interesse público. Assim, não mais estritamente a mãe e o próprio filho ou filha passaram a poder buscar o reconhecimento paterno. O Ministério Público – representante do Estado e importantíssimo ator político na defesa da cidadania e dos direitos sociais – entrou nessa cena.

A partir de 2001, acompanhei dois programas públicos exemplares, com metodologia semelhante. Os Programas “Mutirão da Paternidade” e “Pai Legal nas Escolas”, implementados no Nordeste brasileiro, respectivamente, pelo Ministério Público da Bahia, em Simões Filho (região metropolitana de Salvador) e na Região Centro-Oeste, e pelo Ministério Público no Distrito Federal e Territórios, em Brazlândia (DF). Nessas intervenções sociais, o Ministério Público trabalha junto à rede pública de ensino, buscando suprir a ausência de reconhecimento paterno no universo de estudantes matriculados no Ensino Fundamental e Médio. Esse trabalho tem o sentido de ruptura da apatia do Estado e da sociedade, desestabilizando práticas de silenciamento aparentemente cristalizadas pelo medo e pela vergonha. Tenho testemunhado mulheres-mães, silenciosas e silenciadas, a maioria pobres e/ou negras, atingidas pelo sexismo e pelo racismo, convidadas pelo MPDFT e MPBA ao exercício político da fala. Por meio da palavra ouvida e respeitada, mulheres-mães são encorajadas a ensaiar uma condição de cidadãs e de sujeitos sociais.

CM: Em geral, qual é a concepção do Poder Judiciário sobre esse assunto?
AT: Decisões adotadas no Rio Grande do Sul (Capão da Canoa, em 2003), em Minas Gerais e em São Paulo (em 2004) configuraram como dano moral o abandono afetivo dos filhos, aceitável como prática de um patriarca de outros tempos, mas não compatível com um cidadão de uma sociedade democrática no século XXI. Essas decisões desconstroem a arbitrariedade e rompem com os padrões patriarcais de comportamento.

CM: A súmula do STJ também deve contribuir para romper com esses padrões?
AT: Ainda que súmulas das Cortes Superiores de Justiça do país não obriguem à adoção de decisões semelhantes, a súmula 301 marca uma posição firme na longa disputa em torno da possibilidade de recusa do homem-pai, indicado pela mãe, a submeter-se a um exame em DNA, nos casos de investigação da paternidade. A persistência dessa disputa é, por si só, intrigante. Algumas interrogações não calam: o Código do Processo Civil não estabelece, desde 1973, que “ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”? As disposições legais não seriam universais? E o Código Civil atual, que já vigora há dois anos, não estabelece que “a recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame”? Por que a questão permanece posta? A resistência de homens-pais a acolher as leis do país quando envolvem questões de reconhecimento de filhos concebidos fora do casamento e, especialmente, em relações não estáveis é reveladora do sexismo persistente em nossa sociedade. A súmula do STJ – ao lado de iniciativas do Ministério Público e de decisões muito recentes da magistratura – mitiga o grande desequilíbrio entre o peso dado à palavra da mulher-mãe e o poder admitido ao homem-pai de re(afirmar) seu arbítrio e sua supremacia.

CM: Além da súmula, que outras medidas o Poder Público deve tomar para promover o reconhecimento de paternidade?
AT: Eu destacaria três medidas. Em primeiro lugar, seria muito importante divulgar e nacionalizar as experiências cidadãs, muito inspiradoras, desenvolvidas pelo Ministério Público no Distrito Federal e Territórios e na Bahia. Contribuiria não só para mudar um quadro que deve nos causar constrangimento político, de desigualdade real entre nossas crianças, como também para desconstruir representações sociais nas quais o homem-pai, em pleno século XXI, continuaria tendo o “direito” ao arbítrio, em questões de filiação.

Uma outra medida seria promover urgentemente a inclusão do pai nos dados nacionais, dar-lhe visibilidade. Na Declaração dos Nascidos Vivos – primeiríssimo documento de todo novo pequeno cidadão brasileiro – não há qualquer vestígio do pai. Igualmente nas Estatísticas Vitais anualmente produzidas pelo IBGE desde 1974.

Finalmente, uma transformação substantiva no quadro dos altos índices da prática não democrática de não reconhecimento paterno requer a superação do núcleo duro de nosso Direito de Família: a ideologia da mentira presumida da palavra das mulheres brasileiras quanto à paternidade de nossas crianças, uma das mais fortes expressões de sexismo. O desafio de superar a desigualdade de credibilidade entre a palavra masculina e a palavra da suas cidadãs tem como pressuposto o imperativo da inversão do ônus da prova da paternidade. Uma medida como essa não é original. Já há sete anos, o Conselho da União Européia estabeleceu a inversão do ônus da prova, em casos de discriminação baseada no sexo. O Tribunal de Justiça da Comunidade Européia declarou que a efetiva aplicação do princípio de igualdade de tratamento exige que o ônus da prova, nesses casos, incumba à parte demandada.

Também aqui no Brasil podemos dizer que, para a efetiva aplicação do princípio da igualdade entre homens e mulheres, anunciado na nossa Constituição, e para superar diferenças de sexo, de raça e de classe que se transmutaram em desigualdades, desfavorecendo fortemente, neste quadro, as mulheres-mães, impõe-se a exigência de que o ônus da prova da paternidade seja retirada da parte mais vulnerável.

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