ADOLESCÊNCIA E MODERNIDADE
1. Partimos da premissa de que a adolescência, longe de ser um momento do desenvolvimento de uma essência evolutiva chamada supostamente indivíduo, ela é, antes, um trabalho psíquico cuja emergência responde a uma necessidade de estrutura e, em cuja eficácia, estará implicada, não sem que aí deixasse de se apresentar um real a se dar conta, uma operação do simbólico. À necessidade de estrutura aqui aludida corresponde o estado de anseio e a urgência subjetiva pelo apelo ao Outro em decorrência da traumaticidade a que se reduziu a puberdade, doravante destinada a ser apresentada (porém, sem se deixar representar, a não ser só depois de simbolizada) como uma pura emergência do real, num mundo onde a eficácia do Nome-do-Pai, para além da infância e do Édipo caseiro, veio a ser minimizada. Ora, esse mundo é o da modernidade.
À operação do simbólico implicada na ação do trabalho psíquico da adolescência corresponde o ato psíquico do construir, entendido não como intervenção do analista, mas como um ousar do sujeito adolescente, uma ousadia necessária à operação do adolescer. E a que visa esse ato do construir? Visa à reposição decidida do Nome-do-Pai e à apropriação de seu legado pelo sujeito; visa ainda a inscrição no e pelo simbólico da intensidade traumática a que se resumiu a experiência da puberdade, reduzida na modernidade, a intrusão do real. Enfim, a operação visa, num segundo tempo, anular a necessidade pela qual, no primeiro tempo, ela foi posta em marcha. Num segundo tempo!? Não, num terceiro. O segundo foi o tempo do trabalho propriamente dito da adolescência. Eis aí a temporalidade lógica que temos de verificar sempre que houver ato psíquico, segundo aprendemos com Lacan. Eis aí também a efetivação de um trabalho, pois sem ele não haverá nada que seja psíquico, conforme nos ensinou Freud.
Se, ao adolescer, o sujeito entra marcado pela modernidade, ao realizar/superar (aufheben) seu adolescimento, ele responde ativamente a ela: este último movimento, entretanto, estará restrito àqueles que puderem ter êxito na travessia. Aqui se situa o lugar do ato analítico no trabalho com a adolescência: operar no sentido de cuidar para que a travessia transcorra apesar e até por causa dos virtuais obstáculos a seu êxito.
O argumento acima expõe um esboço razoável da imbricação íntima , necessária e mútua que une a adolescência e a modernidade. Nossa tarefa, a seguir, será a de explicitar a inteligibilidade dessas relações e situar, nessa trama, o lugar que a adolescência encontra nas considerações do pensamento psicanalítico.
2. O que entendemos por modernidade? Não pensamos que modernidade seja algo que diga respeito a uma idade da história; a modernidade caracteriza, antes, um certo modo de disposição do social, de suas exigências e da especificidade dos laços que esse modo de disposição do social torna possível.
Lacan caracterizou a contemporaneidade como sendo esse tempo do declínio social da função paterna. A modernidade que, não é um tempo da história, é esse modo de disposição do social que impôs à contemporaneidade – esta sim, um tempo da história, o seu tempo atual – o específico de sua socialidade. O oposto da modernidade seria a tradicionalidade. Numa socialidade tradicional, a função paterna reina com segurança. A modernidade impôs-se como forma de socialidade distinta da tradicionalidade sobre o tempo da contemporaneidade de uma maneira tão expandida que, hoje, arvora-se em se tornar a modalidade universal do laço social. Se na contemporaneidade a modernidade tende a se expandir universalmente por sobre as diferentes sociedades, por outro lado, não é apenas na contemporaneidade que ela se realizou. Desde a antigüidade, onde houve um grande império – como o império de Alexandre Magno, o império romano, o império persa e outros – lá já se encontravam os efeitos de ruptura dos laços societários da tradição e o surgimento, em seu lugar, dos laços que caracterizam a modernidade. Por isso que não podemos dizer que a modernidade fosse um tempo específico da história.
Se a contemporaneidade está marcada, para Lacan, pelo declínio social da função paterna, para Durkheim, ela se caracteriza pela supremacia da função sobre a forma. A sociedade tradicional, para este último, ao contrário, privilegia a formalidade sobre a funcionalidade. Quanto a nós, pensamos que se trata, em ambos os autores, da mesmo diagnóstico: a queda da supremacia da forma é o declínio social da função paterna.
Expansão e velocidade são os atributos essenciais da modernidade. A expansão se apresenta nessa vocação do moderno de se impor sobre as comunidades desconhecendo a realidade formal das fronteiras. A velocidade se apresenta na ânsia pelos resultados com o máximo de economia dos gestos. Ora, o puramente formal, aquilo que é o modo específico de fazer que caracteriza aquele fazer como sendo o de uma comunidade e que de nada serve para a funcionalidade do resultado enquanto tal – se não para imprimir-lhe a assinatura de uma proveniência – , esse “modo de” nomeador que, pelo projeto da modernidade, haveria de se querer que fosse reduzido a um nada, nada mais é senão o veículo, por entre os laços societários, da transmissibilidade de um Nome-do-Pai.
A expansão se realiza privilegiadamente em regimes imperialistas. O imperialismo antigo, que se baseava na conquista militar de territórios, e o imperialismo contemporâneo, que se baseia na conquista econômica de mercados, são ambos modernos – um expõe uma forma de modernidade como oposição à tradição, que vigorou da antigüidade até há algumas décadas; o outro apresenta a versão contemporânea do moderno. E, como modernos, os imperialismos de todos os tempos caracterizam-se pela expansão em ato, sobre sociedades e comunidades diferentes, de um poder estranho que se impõe de alhures sobre os grupos humanos: o Estado, com sua nova formalidade-orientada-para-os-resultados, sobre o pluralismo das nações que nele foram integradas, sobre o social, sobre o comunitário, sobre a etnicidade dos povos. Nele, a forma Estado-Nação, legado se não originado na, ao menos transmitido pela Revolução Francesa ao Ocidente, ao dizer-querer superar, nessa pretensa síntese, a oposição Estado e Nação, criou-se como uma monstruosidade que bem exemplifica a ementa, quando esta se torna pior do que o soneto: o Estado-Nação se fez, implicitamente, excludente ao pluralismo. Se a velocidade do social, tomada como um valor em si, para se realizar, legitima a tentativa de apagamento da função social do pai, a expansividade do estatal, por sua vez, quando tomada igualmente como um valor em si, logra desqualificar como obsoleta, de saída, toda a marca de filiação que singularizaria um sujeito – coletivo ou individual – , bem como põe, desde o princípio, sob suspeita a diferença que aquela filiação ousa expor na coletividade.
A velocidade presentifica-se na contemporaneidade, privilegiadamente, como exigência suprema, nas diversas modalidades das micro-organizações historicamente instituídas. Tomemos como exemplar uma modalidade de instituição que nos é conhecida, a nós, psicanalistas. Mesmo se considerarmos, em nosso exemplo hipotético, alguma associação de psicanalistas com a qual estejamos todos inteiramente de acordo, vez por outra nos depararemos com o surgimento, nela, de uma certa tensão, um certo desacordo que pode se dar entre aquilo que nela quer falar em nome, digamos assim, do analítico, princípio pelo qual a instituição foi constituída, e o institucional, por assim dizer. Ora, o institucional, que a princípio só foi armado para fazer andar o analítico, sendo este, na origem, a razão mesma de ser da instituição, por sua própria “natureza”, num segundo tempo, esse institucional, não necessariamente por culpa de alguém, mas antes por sua própria lógica, toma-se e impõe-se como um circuito autônomo de racionalidade, desconhecedora, no limite, da razão Outra que lhe convocou a existência. Isto acontecerá sempre que, no interior dessa instituição, não tenha sido previamente inventado algum dispositivo suficientemente capaz de operar, de tempos em tempos, entre o institucional, a causa a que ele deveria servir e a comunidade a que ele representa, alguma correção de percurso. Isso é uma exigência de estrutura, antes de ser conseqüência desta ou daquela forma de dirigir – mesmo que reconheçamos que modos particulares de direção constituam uma segunda ordem problemática, freqüentemente grave, aliás. Queremos apenas ressaltar que, de uma ordem logicamente anterior a qualquer conflito em torno de modalidades de direção, ou mesmo de má-fé, que historicamente possam se apresentar, desde antes já se põe, a qualquer instituição um problema de ordem estrutural pelo qual se evidencia um desacordo inerente ao próprio funcionamento da estrutura, sendo esse um funcionamento algo que, se deixado à sua própria inércia, fatalmente fará surgir uma distorção grave para os laços sociais ali implicados. Ocorre que o elemento societário que é a voz do próprio institucional na instituição funciona segundo uma racionalidade muito específica que pensa por si, que se autojustifica e se legitima diante do Outro por ser aquele que sabe das viabilizações, das operacionalizações, dos recursos, dos caminhos das pedras, das parcerias necessárias, da política das prioridades, e de outros meios pelos quais se deve garantir uma realização. Ela sabe ainda que o processo andará mais ligeiro se houver pouco debate entre o menor número possível de debatedores autorizados. O elemento do analítico, por seu lado, em meio a qualquer organização que se cristaliza, ele só pode deixar de ser um incômodo quando já deixou de seguir as vias pelas quais se realiza: reabrir a doutrina para fazê-la avançar na acolhida do ainda não constituído como saber em jogo na formação do analista e na transmissão da psicanálise.
O assunto precedente apenas quis aqui exemplificar o valor moderno da velocidade se impondo sobre as especificidades de uma tarefa. Se extrapolarmos da instituição psicanalítica para qualquer outra, haveremos de reconhecer que em qualquer uma o elemento do institucional opera do mesmo modo e, portanto, tende a homogeneizar o elemento da especificidade que, no conjunto das organizações, representaria a diferença que singularizaria cada uma. Assim, uma instituição financeira e uma religiosa tornam-se administradas não só de forma muito parecida, como a ambas se impõe que se conformem a uma forma única. A linguagem denuncia isso. Mercadoria, rito, espetáculo, papéis, saber ou dinheiro, a qualquer instituição o administrador, executivo ou voluntário, haverá de perguntar para preencher as lacunas de seu formulário: Aqui, vende-se o quê?
O que avançamos aqui, tentando apreender o que possa particularizar a modernidade naquilo que esta seria concebível, sob o signo do declínio da função social do pai, enquanto alteradora da estrutura da subjetividade e organizadora dos laços sociais dos sujeitos, deixa em aberto ainda todo o campo para se considerar o que vem se tornando, sob essa ordem, a estrutura familiar, o laço conjugal, a função da transmissão formadora do sujeito e a relação deste com o seu semelhante. Não nos estenderemos sobre essas conseqüências da modernidade porque, a despeito delas se articularem mais diretamente sobre a constituição e alteração dos sujeitos na coletividade, por isso mesmo, já foram objeto de nossas considerações em outros lugares. A brevidade desta exposição, se não permite que aqui se discorra por estas conseqüências, por outro lado, ela já autoriza, pelo já dito, alguns saltos na direção de nossa temática presente.
Se, mesmo considerando toda a alteração na ordem da coletividade que acima se expôs, ainda assim nem o mais refinado da nossa acuidade poderia subscrever que o sintoma social dominante, para retomarmos um conceito de Contardo Calligaris, se encontra sob o registro da psicose, então o declínio da função paterna de nossa modernidade, ao menos até estes nossos dias, encontra algum limite. Não tendo, portanto, se elevado a incidência de psicose nestas últimas gerações, com todo o avanço do declínio da função paterna destes últimos anos da marcha da modernidade, logo, em nossos dias, ainda só se continua a produzir estruturas psicóticas como antigamente – pela não constituição da metáfora paterna, ou pela foraclusão do Nome-do-Pai, no édipo desse que, ulteriormente, desenvolverá ou não o quadro clínico correspondente à modalidade de estruturação que o constituiu como sujeito em sua infância.
Então, o que se diagnostica como sendo um declínio social da função paterna deve ser pensado, dentro dos marcos de bordas indefinidas do momento presente da modernidade, como algo que não atinge de modo específico os membros de uma coletividade senão após a constituição do sujeito infantil. Para este, ao menos até o limite da puberdade, os dispositivos do social, mudados ou não, continuam funcionando como funcionavam para algumas gerações imediatamente anteriores, no que se refere aos efeitos constitutivos das estruturações fundamentais que a clínica psicanalítica reconhece.
Esta é a razão pela qual endossamos que isso que declinou na modernidade se nomeie apenas como função social da paternidade. O elemento que este conceito nomeia, para nós, não é sinônimo de metáfora paterna, Nome-do-Pai, pai-morto, grande Outro ou pai simbólico, embora ele se articule a todos estes conceitos ou mesmo que, em algumas de suas emergências, ele possa estar sobreposto a um ou mais daqueles. Ele é, a rigor, apenas aquele ponto a que se dirige, em meio aos laços sociais, a palavra, o ato ou mesmo o sintoma de um sujeito, naquilo que estas manifestações possuírem de equivalência simbólica com o que for, estruturalmente falando, uma invocação a um pai.
Queremos ainda enfatizar aqui a pequena frase que acima repousa, desapercebida talvez, entre vírgulas: em meio aos laços sociais. O pai chamado, mas desaparecido ou enfraquecido é o do mundo da sociabilidade ampla, o qual só se torna um significante destacado e de interesse imediato para aqueles que a este mundo venham a aceder sem a tutela da autoridade familiar ou de seus representantes. Logo, é ao púbere que a ausência ou enfraquecimento dessa referência paternal virá surpreender. No social da modernidade, não há mais algo como um pai, com o valor que esta posição ou função guardava no familiar infantil. No social da modernidade, nem Deus – mesmo para aquele que crê – pode ser uma presença direta. No social da modernidade, nem mesmo o pai da realidade familiar infantil se sustenta como o mesmo – e isto não se descobre sem espanto.
3. Dizíamos acima que a modernidade, com toda o seu declínio da função social do pai, não veio a promover a psicose como estruturação clínica universal. No entanto, a eficácia desse declínio sobre as instituições do social, mesmo pondo à parte puberdade e adolescência, não deixaria de fora a organização subjetiva, ainda que com o limite que mencionamos. Não nos esqueçamos que a própria realidade que reconhecemos como subsumida sob o conceito de subjetividade – essa para cujo exame Freud a traduziu sob o modo da representação na teoria de um aparelho psíquico e que Lacan veio a ressituar sob o modo da topologia; essa com a qual trabalhamos e também essa que somos – ela também é uma modalidade organizativa historicamente instituída. Logo, uma instituição.
A experiência e a teorização da psicanálise ensina que, sob a primazia e a anterioridade do Outro e da relação à linguagem, essa instituição que é a subjetividade é organizada por uma estrutura de borda que, a despeito de não delimitar um dentro e um fora à moda de um saco, sua configuração, pensável como uma banda de Möbius, não deixa de ter certo efeito de fazer fronteira. Ora, o declínio da função social do pai é, nessa região do campo do Outro que chamamos de o social, como uma marcha do real na direção de fazer calar uma voz, de fazer silenciar justamente esse objeto que é o objeto da pulsão invocante, objeto que, por excelência, é aquele que circula, através do chamar e do ser chamado, entre o sujeito e o Outro. Neste sentido, o declínio social da função paterna vem a alterar a função de borda das estruturações subjetivas, por um lado, abrindo seus flancos, para a intrusão do real da pulsionalidade e do real do trauma e, por outro, dificultando a eficácia reorganizadora das instabilidades narcísicas que a “escolha da neurose”, em geral, lograva obter sobre o infantil. Parece-nos, então, que o declínio no social de que aqui tratamos é algo que veio, se não substituir ou fazer desaparecerem as estruturações – o que não tem sido o caso – , ao menos mudar significativamente o litoral entre o real e o simbólico, tal como o conhecíamos, dando lugar ao que se tem chamado de “as novas formas do sintoma”.
Isto talvez esclareça, ao menos parcialmente, porque, no presente imediato, as demandas por análise tenham se tornado tão sensíveis às desordens no gozo provocadas pelo que escapa às estruturações subjetivas que constituem o sujeito segundo as vias pelas quais a cada um é dado sair, ou não, da estrutura edípica infantil. Não que o sujeito contemporâneo escape da estrutura. Ele se constituiu ou como psicótico, ou como neurótico ou como perverso, desde a travessia pelo édipo. Ocorre que essas estruturações, organizadas por algum balizamento do simbólico, para aquilo que é a sensibilidade contemporânea, instituída por esse mundo da contemporaneidade onde a função simbólica da paternidade deixa de contar para aqueles que saem da primeira infância, para essa sensibilidade, as atualizações da estruturalidade, como se diz, quase já “nem cheiram e nem fedem”.
A sensibilidade contemporânea visualiza com mais acuidade as desordens que nos tempos do velho Freud só se explicitavam, sob a forma de efeito para alguns indivíduos, como conseqüência de colapsos sociais esporádicos, mesmo que estes fossem freqüentes ou mundiais. Hoje, eles são menos ruidosos ou letais, mas se tornaram silenciosamente constantes na vida de um grande centro urbano. Consequentemente, as queixas subjetivas que correspondem aos incômodos para quais o sujeito contemporâneo está mais sensível, são os efeitos daquilo que, na literatura freudiana, se nomeou como neuroses atuais (psicastenias e neuroses de angústia, no interior das quais se situariam os fenômenos psicossomáticos, certos fenômenos depressivos e os fenômenos do pânico), neuroses traumáticas (intrusões do real provocadas pela exposição do sujeito, na ausência de mediações do simbólico – ausência tão mais efetiva quanto mais se viver sob o declínio social da função paterna – a certas experiências advindas seja da ambiência, seja de alguma ingestão tóxica, seja de alguma alteração súbita da corporalidade, seja esta mórbida ou funcional – como a metamorfose pubertária) ou neuroses narcísicas (instabilidades narcísicas às quais o esperado seria que as estruturações advindas do édipo pudessem ter normativizado – episódios alucinatórios fora de uma estrutura especificamente psicótica, fenômenos hipocondríacos, anorexias, bulemias, melancolia ).
Outros efeitos sintomáticos contemporâneos que escapam às fronteiras simbólicas das estruturações estão situados no que podemos chamar de modalidades neuróticas de invejar o suposto gozo perverso – suposto pelo neurótico, evidentemente – entre estes se encontram as toxicomanias, o alcoolismo, as violências gratuitas, as compulsões aos esportes radicais, o fascínio pelo risco nos jogos de azar e aquilo que Contardo Calligaris isolou para designar as montagens perversas nos laços coletivos entre neuróticos e nas corporações do social, montagens cujo espectro de manifestações vão desde a mais prosaica armadilha ao semelhante, por parte daquele a quem “mais vale perder um amigo do que deixar escapar a oportunidade de fazer um ‘bom’ gracejo com a devassa do outro”, até a especificidade do laço social que caracterizou a expansão e o exercício do genocídio no espaço dominado pelo Nazismo. Destes últimos efeitos sintomáticos, entretanto, não é muito de se esperar que eles, por eles mesmos, venham a gerar demanda para uma análise, posto que estes, estes sim, produzem gozo.
Gozo ruinoso, entretanto, mas ainda assim, gozoso. Gozo cujo fascínio remonta ao real da pulsão de morte no que ela não cessa de não se inscrever no inconsciente, logo pulsionalidade locada no Isso e não amansada pela Lei, locada no Isso de onde ela espera o momento propício para irromper no sujeito. Pulsionalidade barrada, mas não recalcada pelo édipo, como aquilo que desde o auto-erotismo da sexualidade perversa polimorfa infantil tendia a se incorporar ao Outro materno real e que ao retornar pede por nada menos do que a indiferenciação, o desaparecimento do próprio sujeito, tendência contra a qual, às vezes e com maior freqüência na contemporaneidade, o narcisismo deixa de se opor com a convocação de alguma fobia. Mesmo fenomenicamente assumindo as figuras de uma sóbria elegância ou ainda as do mais vil sadismo, essas formas não podem senão nos fazer pensar, a nós, armados pela experiência freudiana, nos destinos do que Freud nomeou como o masoquismo originário desde o seu O problema econômico do masoquismo (1924) . Parte de nossa leitura desde texto freudiano a compreensão que temos alcançado tanto da pulsão de morte e do princípio nomeado como além-do-princípio-do-prazer, ambas noções nada simples da obra freudiana, quanto da mais radical entre as intrusões do real de que fala Lacan – aquela que remete para além do que é inconsciente – e da modalidade menos subjetivante entre as modalidades pelas quais Lacan identifica o gozo – o gozo ruinoso, como teorizado no seu Seminário XVII, O avesso da psicanálise (1969-70) .
Com o acima articulado, pudemos expor por onde a modernidade, enquanto um fenômeno histórico e de civilização, produz seus efeitos, e até que ponto, na organização mesma da subjetividade. Resta situarmos aí o quanto o trabalho psíquico da adolescência possa nos testemunhar sobre essa atividade solidária entre a modernidade e o aparelho psíquico.
4. Até aqui, a ordem de exposição que adotamos invertia a ordem da investigação por onde íamos descobrindo a eficácia subjetiva do fenômeno da modernidade. Nosso ponto de partida foi a psicanálise, e a psicanálise com adultos. A adolescência tornou-se para nós uma inquietação na decorrência desse trabalho em andamento e foi para elucidá-la que chegamos a considerar a modernidade como essa região do campo do Outro capaz de produzir efeitos sobre o sujeito. Neste momento, apresentaremos em breves linhas o que temos avançado sobre a adolescência para, em seguida, sublinharmos a íntima articulação que une esta operação psíquica à modalidade contemporânea da modernidade.
Comecemos marcando que o tema da adolescência não nasceu como um conceito psicanalítico. Quando, no verão de 1991-92, redigimos o nosso Sobre o lugar da adolescência na teoria do sujeito , foi necessário desconstruirmos essa noção, tal como utilizada pelo senso comum e pela mídia e, em seguida proceder à sua reconstrução enquanto conceito psicanalítico e lugar tenente de uma especificidade estrutural na constituição subjetiva de homens e mulheres na contemporaneidade.
Para nós, a adolescência diz respeito a uma operação psíquica que a contemporaneidade tornou necessária, no presente, para que um(a) jovem possa vir a inscrever no simbólico, por meio desse trabalho psíquico, o enigma siderante do real a que veio a se tornar a metamorfose pubertária, na ausência da eficácia implícita outrora no dispositivo simbólico-societário presente em um rito de passagem, no lugar que a este era reservado numa comunidade tradicional. Esse dispositvo consistia numa das materializações, em meio aos laços sociais de uma coletividade, da função paterna, função cujo declínio no social viria a caracteriar a socialidade no mundo contemporâneo. Quando ainda se podia esperar alguma força na eficácia constituinte, para o sujeito tornado um adulto entre outros de sua comunidade, dos ritos de passagem, a enigmaticidade presentificada pela emergência da puberdade seguiria por uma via – preparada pelo rito, pela sua preparação, pela dramatização do cerimonial que o encerrava, pela transmissão e nomeação que ele cumpria e pelo efeito de Nachträglichkeit que a ele se seguiria – por onde aquela enigmaticidade viria a ser transliterada ao simbólico por ação dos próprios laços da tradição e sem nada mais aguardar do sujeito se não o que lhe prescrevia a sua participação no rito. Na modernidade contemporânea os ritos, quando não desapareceram, foram reduzidos em sua eficácia e deslocados de seu antigo lugar central na vida coletiva. A operação de transliteração do real ao simbólico não pode mais, portanto, conduzir-se desde o exterior, desde esse lugar do campo do Outro onde antes havia a eficácia do rito. Aquilo que desapareceu no exterior haverá, então, de ser reinstituído intrapsiquicamente. A essa exigência de trabalho psíquico, necessária para que um sujeito venha a construir para si uma paternidade Outra, Outra que não a edípica, corresponde a adolescência enquanto operação psíquica.
A operação da adolescência, enquanto trabalho psíquico, define-se por sua finalidade: construir aquilo que desde a ação da modernidade veio a faltar nos laços sociais, ou seja, essa função paterna cuja eficácia habilita a um sujeito transitar na coletividade sem a tutela de seu meio familiar infantil. Essa função paterna é um nome abreviado, cifrado, que nomeia o conjunto daquilo de que alguém precisa dispor para circular socialmente após a puberdade e emancipado de sua proteção infantil, ou seja, esse alguém precisaria de certos meios para ter acesso ao Outro sexo, para se fazer reconhecer, para vir a atingir alguma forma de troca com seu entorno por onde ele poderá cuidar de receber o seu sustento. Um psicanalista sabe porque se nomear como paterno ao conjunto destes dispositivos. Pai é o nome do lugar onde se inscreve tudo aquilo que se encontra, ou a que se apela, ou mesmo que se constrói, no lugar dos recursos pelos quais nos sustentamos no Outro para estarmos face à face com os outros.
Ter acesso ao Outro sexo, fazer-se reconhecer, trabalhar: o conjunto destes objetivos definem o final da adolescência, e este final só será atingido quando a operação da adolescência lograr remover o que faz obstáculo para o seu alcance. Operar por sobre esses obstáculos, aliás, é o essencial mesmo do processo, de tal forma que, se esses possíveis obstáculos forem defensivamente elididos ou se o jovem vier a se inibir diante dos mesmos, a operação corre o risco de fracassar. O lugar da análise, aqui, se define como esse campo onde, suportado pela transferência, o confronto com os obstáculos possa não ser evitado, mas, ao contrário, experimentado e efetivado. Em outro lugar retornaremos à análise e ao analista diante do adolescente, pois aqui nosso tema é outro.
Acesso ao Outro sexo, fazer-se reconhecer, trabalhar: o que isso quer dizer? Responderemos em três partes e em resumos que apenas anunciam as questões, pois desenvolvê-las fugiria, aqui, de nosso tema.
(1) A experiência heterossexual do adolescente, tanto quanto a atuação freqüentemente homossexual da criança em suas experimentações durante o tempo definido por Freud como de latência, do ponto de vista da estrutura, ou não é sexual ou não se dá com um outro. O Outro sexo é alcançado através de uma descolagem da sexualidade infantil e é em relação ao infantil que ele é Outro. Alcançá-lo exige um passaporte específico e uma travessia pelo Outro pela via dos Nomes-do-Pai.
(2) O tema do reconhecimento surge como um tema caro a Lacan durante os anos cinqüenta. Pensamo-lo como de grande atualidade, a despeito de seu desuso explícito, ao lado de noções como as de inter-subjetividade e de palavra plena. A articulação entre esses três conceitos, uma vez considerada, permitiria-nos, é nossa aposta no presente, uma nova inteligibilidade do Lacan ulterior. Isso, olhando para a frente, poria nova luz ao anolamento do real, do simbólico, do imaginário e às páginas não desprovidas de hesitações que nos apresentam o Sinthome enquanto quarto aro do nó. Olhando para trás, reafirma a tese do desejo enquanto desejo do Outro e revê com originalidade a confusa separação, assumida em certos trechos do texto freudiano, entre a ordem do narcísico e a ordem da objetalidade. Olhando ao seu redor, dá acolhida a uma frase escrita por Lacan para a sua conferência de inauguração da Sociedade Francesa de Psicanálise, acontecida aos 8 de julho de 1953 e precedendo o Discurso de Roma, intitulada O simbólico, o imaginário e o real: “(...)o objetivo de toda saúde (...) não é (como se crê) se adaptar a um real [aqui querendo dizer ‘realidade’] mais ou menos bem definido, ou bem organizado, mas de fazer reconhecer sua própria realidade.” Esta idéia traz a vantagem, ainda, de podermos tomar o movimento de um sujeito fazendo-se endossar diante de uma coletividade, e através do Outro, como esse que é constituído por essa filiação, que o situa, e por certa originalidade, que o singulariza em meio à sua herança. Exatamente aquilo que, desde o Outro, o sujeito adolescente espera se ver confirmado.
(3) O trabalho é a via longa pela qual o jovem adulto substitui a via curta, mas infantil, do “papai me dê, papai compre para mim”. Aceder ao trabalho não é, freudianamente falando, ter uma mera ocupação remunerada. Se assim fosse, Freud exigiria mais do que o acesso ao amor e ao trabalho para considerar o percurso de uma análise cumprido. Trabalhar exige o expor-se, na materialização do mundo humano, dessa realidade subjetiva que de lá, após contornar um ponto terceiro, como o movimento do Witz (tal como entendido por Freud ), lhe retorna com o elemento para o seu sustento e com recursos para futuras exposições no mundo, isto é, para ulteriores trabalhos.
Se o leitor reler os três pontos acima enumerados, ele haverá de concordar que não se acede a nenhum sem o acesso simultâneo aos três. Aliás, eles não são três, mas um único, que se chama construção da Outra paternidade, construção visada pelo adolescer como operação psíquica.
Quanto tempo dura a operação da adolescência? O tempo necessário para se efetivar ou aquela construção, que finalizaria e cumpriria a finalidade da adolescência, ou a fixação da realidade do sujeito reduzida sob a forma da reificação da ilusão do indivíduo, como o quer uma coletividade que já perdeu a vocação pelo comunitário, o que seria o fracasso da adolescência. Trata-se, portanto, de uma temporalidade lógica, não cronológica, embora iniciada pela eclosão da puberdade e ao seu enigma buscando responder. A eclosão siderante da puberdade corresponderia ao instante de ver; o cumprimento da construção da paternidade seria o momento de concluir desta operação. Entre ambos teremos o tempo de olhar e as reviravoltas dialéticas que ele implica. Supõe-se que a adolescência dura apenas alguns poucos anos após a puberdade, outros pensam-na como sinônimo dos anos teens, alguns consideram-na sinônimo de juventude e outros diferenciam as duas categorias, muitos, ao modo do discurso legal, a identificam com a menoridade após os doze anos e muitos outros, como a medicina, pensam a adolescência como durando até certa maturação fisiológica (muito imprecisa, de qualquer forma, pois no organismo pode-se encontrar, natural e saudavelmente, ao mesmo tempo, tecidos precocemente senis e outros ainda se aprontando, mas com certa utilidade prática, tanto fisiológica quanto social, como na classificação de alguma gravidez). Nessas considerações não há conceito, só modos de dizer ou, no máximo, convenções, mesmo que com certa justificativa ad hoc. Só no campo da psicanálise a noção de adolescência, por definir-se como operação psíquica após ter sido separada de qualquer psicologia evolutiva, elevou-se à ordem do conceito.
5. Na expressão O adolescente e a modernidade, título que nomeia este Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões, sob a coordenação desta Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro, estão articuladas duas categorias onde cada qual exige a presença da outra. A modernidade não se efetivaria no mais íntimo da carne da subjetividade se os entes humanos, sob sua vigência, não viessem a adolescer. O adolescente, por sua vez, não teria existência se não fosse como efeito da ruptura dos laços societários que a idade contemporânea da modernidade veio a impor por sobre os laços da tradição. Mas a adolescência do adolescente só é solidária à modernidade quanto à sua existência, pois quanto ao sentido do seu trabalho psíquico, simultaneamente intra e trans subjetivo, ela a subverte por visar construir o que vem a repor a equivalência da paternidade que a modernidade visava fazer declinar. Isto, para nós, é o que dá conta dessa tensão que, simultaneamente, une e separa o adolescente e a modernidade.
Instaurada na contemporaneidade e tornada amplamente necessária em todo o Ocidente como instituinte da subjetividade adulta há não mais que quatro décadas – portanto nosso objeto não pertence ao reino da natureza – , a adolescência se situa como uma específica neurose traumática que inventivamente luta pela causa do sujeito na resposta ao trauma em que se tornou, com a modernidade, a eclosão da puberdade.
Adolescer é produzir um segundo tempo constitutivo da subjetividade que o mundo contemporâneo tornou necessário com o declínio da função social da paternidade: se, com o édipo o sujeito se constituiu pela interdição da endogamia, após a latência, com o adolescer, o sujeito, antes de se tornar adulto, haverá de ser re-constituído pela homologação da exogamia.
A adolescência se põe, portanto, como um possível quarto aro no nó borromeano de quatro aros, a fim de dar sustentação a um sujeito adulto futuro enquanto Sinthome. Afinal, num mundo novo onde, para além de se ter instituído, com o declínio da função social da paternidade, a necessariedade do adolescer – a mais benígna entre estas novidades clínicas – , se impõe, como mencionamos antes, tantas novas modalidades de economia do gozo, todas antagônicas à ordem da realidade do desejo humano, nesse admirável mundo novo, a possibilidade e a qualidade da vida e da socialidade humanas dependerão da qualidade desse Sinthome cujo tecido vem sendo produzido no tear da adolescência. O psicanalista encontra aqui, portanto, boa parcela de sua responsabilidade.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. – Obras Completas, Amorrortu editores, Buenos Aires, 1996.
LACAN, J. – L’envers de la psychanalyse, Le Séminaire – Livre XVII (1969-1970), Seuil, Paris, 1991.
LACAN, J. – Cadernos Lacan – 1ª. Parte, publicação não-comercial, documento interno da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, s/d.
RUFFINO, R. – Sobre o lugar da adolescência na teoria do sujeito, in Rappaport, C. L. (org.), Adolescência: abordagem psicanalítica, EPU, São Paulo, 1993, pp. 25-57.
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RUFFINO, R. – A adolescência como operação do simbólico, in Pulsional, ano IX - nº. 89 - setembro de 1996, pp. 05-13.
RUFFINO, R. – Adolescência e puberdade, in Pulsional, ano X - nº. 95 - março de 1997, pp. 37-47.
RUFFINO, R. – Fragmentos em torno da epopéia do sujeito em torno da operação do adolescer, in Corrêa, A. I. G. (org.), Mais tarde... é agora! – Ensaios sobre a adolescência, Ágalma, Salvador, 1996, pp. 078-100.
RUFFINO, R. – Adolescência, modernidade e violência gratuita, in Associação Psicanalítica de Curitiba em Revista, ano I - nº. 1 - agosto de 1997, pp. 47-74.
RUFFINO, R. – Escrever, construir: por onde a operação do adolescer poderia não fracassar, in Associação Psicanalítica de Porto Alegre (org.) Adolescência: entre o passado e o futuro, Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1997, pp. 213-231.
RUFFINO, R. – Fazendo valer: modalidade contemporânea, in Associação Psicanalítica de Porto Alegre (org.), Adolescência: entre o passado e o futuro, Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1997, pp. 291-314.
Rodolpho Ruffino
Psicanalista
Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
Exerce a clínica psicanalítica com adultos e adolescentes em São Paulo
R. Curt Nimuendaju, 58 – Bairro das Perdizes
CEP 05015-010 São Paulo SP
TEL. (0**11) 3871.4501
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À operação do simbólico implicada na ação do trabalho psíquico da adolescência corresponde o ato psíquico do construir, entendido não como intervenção do analista, mas como um ousar do sujeito adolescente, uma ousadia necessária à operação do adolescer. E a que visa esse ato do construir? Visa à reposição decidida do Nome-do-Pai e à apropriação de seu legado pelo sujeito; visa ainda a inscrição no e pelo simbólico da intensidade traumática a que se resumiu a experiência da puberdade, reduzida na modernidade, a intrusão do real. Enfim, a operação visa, num segundo tempo, anular a necessidade pela qual, no primeiro tempo, ela foi posta em marcha. Num segundo tempo!? Não, num terceiro. O segundo foi o tempo do trabalho propriamente dito da adolescência. Eis aí a temporalidade lógica que temos de verificar sempre que houver ato psíquico, segundo aprendemos com Lacan. Eis aí também a efetivação de um trabalho, pois sem ele não haverá nada que seja psíquico, conforme nos ensinou Freud.
Se, ao adolescer, o sujeito entra marcado pela modernidade, ao realizar/superar (aufheben) seu adolescimento, ele responde ativamente a ela: este último movimento, entretanto, estará restrito àqueles que puderem ter êxito na travessia. Aqui se situa o lugar do ato analítico no trabalho com a adolescência: operar no sentido de cuidar para que a travessia transcorra apesar e até por causa dos virtuais obstáculos a seu êxito.
O argumento acima expõe um esboço razoável da imbricação íntima , necessária e mútua que une a adolescência e a modernidade. Nossa tarefa, a seguir, será a de explicitar a inteligibilidade dessas relações e situar, nessa trama, o lugar que a adolescência encontra nas considerações do pensamento psicanalítico.
2. O que entendemos por modernidade? Não pensamos que modernidade seja algo que diga respeito a uma idade da história; a modernidade caracteriza, antes, um certo modo de disposição do social, de suas exigências e da especificidade dos laços que esse modo de disposição do social torna possível.
Lacan caracterizou a contemporaneidade como sendo esse tempo do declínio social da função paterna. A modernidade que, não é um tempo da história, é esse modo de disposição do social que impôs à contemporaneidade – esta sim, um tempo da história, o seu tempo atual – o específico de sua socialidade. O oposto da modernidade seria a tradicionalidade. Numa socialidade tradicional, a função paterna reina com segurança. A modernidade impôs-se como forma de socialidade distinta da tradicionalidade sobre o tempo da contemporaneidade de uma maneira tão expandida que, hoje, arvora-se em se tornar a modalidade universal do laço social. Se na contemporaneidade a modernidade tende a se expandir universalmente por sobre as diferentes sociedades, por outro lado, não é apenas na contemporaneidade que ela se realizou. Desde a antigüidade, onde houve um grande império – como o império de Alexandre Magno, o império romano, o império persa e outros – lá já se encontravam os efeitos de ruptura dos laços societários da tradição e o surgimento, em seu lugar, dos laços que caracterizam a modernidade. Por isso que não podemos dizer que a modernidade fosse um tempo específico da história.
Se a contemporaneidade está marcada, para Lacan, pelo declínio social da função paterna, para Durkheim, ela se caracteriza pela supremacia da função sobre a forma. A sociedade tradicional, para este último, ao contrário, privilegia a formalidade sobre a funcionalidade. Quanto a nós, pensamos que se trata, em ambos os autores, da mesmo diagnóstico: a queda da supremacia da forma é o declínio social da função paterna.
Expansão e velocidade são os atributos essenciais da modernidade. A expansão se apresenta nessa vocação do moderno de se impor sobre as comunidades desconhecendo a realidade formal das fronteiras. A velocidade se apresenta na ânsia pelos resultados com o máximo de economia dos gestos. Ora, o puramente formal, aquilo que é o modo específico de fazer que caracteriza aquele fazer como sendo o de uma comunidade e que de nada serve para a funcionalidade do resultado enquanto tal – se não para imprimir-lhe a assinatura de uma proveniência – , esse “modo de” nomeador que, pelo projeto da modernidade, haveria de se querer que fosse reduzido a um nada, nada mais é senão o veículo, por entre os laços societários, da transmissibilidade de um Nome-do-Pai.
A expansão se realiza privilegiadamente em regimes imperialistas. O imperialismo antigo, que se baseava na conquista militar de territórios, e o imperialismo contemporâneo, que se baseia na conquista econômica de mercados, são ambos modernos – um expõe uma forma de modernidade como oposição à tradição, que vigorou da antigüidade até há algumas décadas; o outro apresenta a versão contemporânea do moderno. E, como modernos, os imperialismos de todos os tempos caracterizam-se pela expansão em ato, sobre sociedades e comunidades diferentes, de um poder estranho que se impõe de alhures sobre os grupos humanos: o Estado, com sua nova formalidade-orientada-para-os-resultados, sobre o pluralismo das nações que nele foram integradas, sobre o social, sobre o comunitário, sobre a etnicidade dos povos. Nele, a forma Estado-Nação, legado se não originado na, ao menos transmitido pela Revolução Francesa ao Ocidente, ao dizer-querer superar, nessa pretensa síntese, a oposição Estado e Nação, criou-se como uma monstruosidade que bem exemplifica a ementa, quando esta se torna pior do que o soneto: o Estado-Nação se fez, implicitamente, excludente ao pluralismo. Se a velocidade do social, tomada como um valor em si, para se realizar, legitima a tentativa de apagamento da função social do pai, a expansividade do estatal, por sua vez, quando tomada igualmente como um valor em si, logra desqualificar como obsoleta, de saída, toda a marca de filiação que singularizaria um sujeito – coletivo ou individual – , bem como põe, desde o princípio, sob suspeita a diferença que aquela filiação ousa expor na coletividade.
A velocidade presentifica-se na contemporaneidade, privilegiadamente, como exigência suprema, nas diversas modalidades das micro-organizações historicamente instituídas. Tomemos como exemplar uma modalidade de instituição que nos é conhecida, a nós, psicanalistas. Mesmo se considerarmos, em nosso exemplo hipotético, alguma associação de psicanalistas com a qual estejamos todos inteiramente de acordo, vez por outra nos depararemos com o surgimento, nela, de uma certa tensão, um certo desacordo que pode se dar entre aquilo que nela quer falar em nome, digamos assim, do analítico, princípio pelo qual a instituição foi constituída, e o institucional, por assim dizer. Ora, o institucional, que a princípio só foi armado para fazer andar o analítico, sendo este, na origem, a razão mesma de ser da instituição, por sua própria “natureza”, num segundo tempo, esse institucional, não necessariamente por culpa de alguém, mas antes por sua própria lógica, toma-se e impõe-se como um circuito autônomo de racionalidade, desconhecedora, no limite, da razão Outra que lhe convocou a existência. Isto acontecerá sempre que, no interior dessa instituição, não tenha sido previamente inventado algum dispositivo suficientemente capaz de operar, de tempos em tempos, entre o institucional, a causa a que ele deveria servir e a comunidade a que ele representa, alguma correção de percurso. Isso é uma exigência de estrutura, antes de ser conseqüência desta ou daquela forma de dirigir – mesmo que reconheçamos que modos particulares de direção constituam uma segunda ordem problemática, freqüentemente grave, aliás. Queremos apenas ressaltar que, de uma ordem logicamente anterior a qualquer conflito em torno de modalidades de direção, ou mesmo de má-fé, que historicamente possam se apresentar, desde antes já se põe, a qualquer instituição um problema de ordem estrutural pelo qual se evidencia um desacordo inerente ao próprio funcionamento da estrutura, sendo esse um funcionamento algo que, se deixado à sua própria inércia, fatalmente fará surgir uma distorção grave para os laços sociais ali implicados. Ocorre que o elemento societário que é a voz do próprio institucional na instituição funciona segundo uma racionalidade muito específica que pensa por si, que se autojustifica e se legitima diante do Outro por ser aquele que sabe das viabilizações, das operacionalizações, dos recursos, dos caminhos das pedras, das parcerias necessárias, da política das prioridades, e de outros meios pelos quais se deve garantir uma realização. Ela sabe ainda que o processo andará mais ligeiro se houver pouco debate entre o menor número possível de debatedores autorizados. O elemento do analítico, por seu lado, em meio a qualquer organização que se cristaliza, ele só pode deixar de ser um incômodo quando já deixou de seguir as vias pelas quais se realiza: reabrir a doutrina para fazê-la avançar na acolhida do ainda não constituído como saber em jogo na formação do analista e na transmissão da psicanálise.
O assunto precedente apenas quis aqui exemplificar o valor moderno da velocidade se impondo sobre as especificidades de uma tarefa. Se extrapolarmos da instituição psicanalítica para qualquer outra, haveremos de reconhecer que em qualquer uma o elemento do institucional opera do mesmo modo e, portanto, tende a homogeneizar o elemento da especificidade que, no conjunto das organizações, representaria a diferença que singularizaria cada uma. Assim, uma instituição financeira e uma religiosa tornam-se administradas não só de forma muito parecida, como a ambas se impõe que se conformem a uma forma única. A linguagem denuncia isso. Mercadoria, rito, espetáculo, papéis, saber ou dinheiro, a qualquer instituição o administrador, executivo ou voluntário, haverá de perguntar para preencher as lacunas de seu formulário: Aqui, vende-se o quê?
O que avançamos aqui, tentando apreender o que possa particularizar a modernidade naquilo que esta seria concebível, sob o signo do declínio da função social do pai, enquanto alteradora da estrutura da subjetividade e organizadora dos laços sociais dos sujeitos, deixa em aberto ainda todo o campo para se considerar o que vem se tornando, sob essa ordem, a estrutura familiar, o laço conjugal, a função da transmissão formadora do sujeito e a relação deste com o seu semelhante. Não nos estenderemos sobre essas conseqüências da modernidade porque, a despeito delas se articularem mais diretamente sobre a constituição e alteração dos sujeitos na coletividade, por isso mesmo, já foram objeto de nossas considerações em outros lugares. A brevidade desta exposição, se não permite que aqui se discorra por estas conseqüências, por outro lado, ela já autoriza, pelo já dito, alguns saltos na direção de nossa temática presente.
Se, mesmo considerando toda a alteração na ordem da coletividade que acima se expôs, ainda assim nem o mais refinado da nossa acuidade poderia subscrever que o sintoma social dominante, para retomarmos um conceito de Contardo Calligaris, se encontra sob o registro da psicose, então o declínio da função paterna de nossa modernidade, ao menos até estes nossos dias, encontra algum limite. Não tendo, portanto, se elevado a incidência de psicose nestas últimas gerações, com todo o avanço do declínio da função paterna destes últimos anos da marcha da modernidade, logo, em nossos dias, ainda só se continua a produzir estruturas psicóticas como antigamente – pela não constituição da metáfora paterna, ou pela foraclusão do Nome-do-Pai, no édipo desse que, ulteriormente, desenvolverá ou não o quadro clínico correspondente à modalidade de estruturação que o constituiu como sujeito em sua infância.
Então, o que se diagnostica como sendo um declínio social da função paterna deve ser pensado, dentro dos marcos de bordas indefinidas do momento presente da modernidade, como algo que não atinge de modo específico os membros de uma coletividade senão após a constituição do sujeito infantil. Para este, ao menos até o limite da puberdade, os dispositivos do social, mudados ou não, continuam funcionando como funcionavam para algumas gerações imediatamente anteriores, no que se refere aos efeitos constitutivos das estruturações fundamentais que a clínica psicanalítica reconhece.
Esta é a razão pela qual endossamos que isso que declinou na modernidade se nomeie apenas como função social da paternidade. O elemento que este conceito nomeia, para nós, não é sinônimo de metáfora paterna, Nome-do-Pai, pai-morto, grande Outro ou pai simbólico, embora ele se articule a todos estes conceitos ou mesmo que, em algumas de suas emergências, ele possa estar sobreposto a um ou mais daqueles. Ele é, a rigor, apenas aquele ponto a que se dirige, em meio aos laços sociais, a palavra, o ato ou mesmo o sintoma de um sujeito, naquilo que estas manifestações possuírem de equivalência simbólica com o que for, estruturalmente falando, uma invocação a um pai.
Queremos ainda enfatizar aqui a pequena frase que acima repousa, desapercebida talvez, entre vírgulas: em meio aos laços sociais. O pai chamado, mas desaparecido ou enfraquecido é o do mundo da sociabilidade ampla, o qual só se torna um significante destacado e de interesse imediato para aqueles que a este mundo venham a aceder sem a tutela da autoridade familiar ou de seus representantes. Logo, é ao púbere que a ausência ou enfraquecimento dessa referência paternal virá surpreender. No social da modernidade, não há mais algo como um pai, com o valor que esta posição ou função guardava no familiar infantil. No social da modernidade, nem Deus – mesmo para aquele que crê – pode ser uma presença direta. No social da modernidade, nem mesmo o pai da realidade familiar infantil se sustenta como o mesmo – e isto não se descobre sem espanto.
3. Dizíamos acima que a modernidade, com toda o seu declínio da função social do pai, não veio a promover a psicose como estruturação clínica universal. No entanto, a eficácia desse declínio sobre as instituições do social, mesmo pondo à parte puberdade e adolescência, não deixaria de fora a organização subjetiva, ainda que com o limite que mencionamos. Não nos esqueçamos que a própria realidade que reconhecemos como subsumida sob o conceito de subjetividade – essa para cujo exame Freud a traduziu sob o modo da representação na teoria de um aparelho psíquico e que Lacan veio a ressituar sob o modo da topologia; essa com a qual trabalhamos e também essa que somos – ela também é uma modalidade organizativa historicamente instituída. Logo, uma instituição.
A experiência e a teorização da psicanálise ensina que, sob a primazia e a anterioridade do Outro e da relação à linguagem, essa instituição que é a subjetividade é organizada por uma estrutura de borda que, a despeito de não delimitar um dentro e um fora à moda de um saco, sua configuração, pensável como uma banda de Möbius, não deixa de ter certo efeito de fazer fronteira. Ora, o declínio da função social do pai é, nessa região do campo do Outro que chamamos de o social, como uma marcha do real na direção de fazer calar uma voz, de fazer silenciar justamente esse objeto que é o objeto da pulsão invocante, objeto que, por excelência, é aquele que circula, através do chamar e do ser chamado, entre o sujeito e o Outro. Neste sentido, o declínio social da função paterna vem a alterar a função de borda das estruturações subjetivas, por um lado, abrindo seus flancos, para a intrusão do real da pulsionalidade e do real do trauma e, por outro, dificultando a eficácia reorganizadora das instabilidades narcísicas que a “escolha da neurose”, em geral, lograva obter sobre o infantil. Parece-nos, então, que o declínio no social de que aqui tratamos é algo que veio, se não substituir ou fazer desaparecerem as estruturações – o que não tem sido o caso – , ao menos mudar significativamente o litoral entre o real e o simbólico, tal como o conhecíamos, dando lugar ao que se tem chamado de “as novas formas do sintoma”.
Isto talvez esclareça, ao menos parcialmente, porque, no presente imediato, as demandas por análise tenham se tornado tão sensíveis às desordens no gozo provocadas pelo que escapa às estruturações subjetivas que constituem o sujeito segundo as vias pelas quais a cada um é dado sair, ou não, da estrutura edípica infantil. Não que o sujeito contemporâneo escape da estrutura. Ele se constituiu ou como psicótico, ou como neurótico ou como perverso, desde a travessia pelo édipo. Ocorre que essas estruturações, organizadas por algum balizamento do simbólico, para aquilo que é a sensibilidade contemporânea, instituída por esse mundo da contemporaneidade onde a função simbólica da paternidade deixa de contar para aqueles que saem da primeira infância, para essa sensibilidade, as atualizações da estruturalidade, como se diz, quase já “nem cheiram e nem fedem”.
A sensibilidade contemporânea visualiza com mais acuidade as desordens que nos tempos do velho Freud só se explicitavam, sob a forma de efeito para alguns indivíduos, como conseqüência de colapsos sociais esporádicos, mesmo que estes fossem freqüentes ou mundiais. Hoje, eles são menos ruidosos ou letais, mas se tornaram silenciosamente constantes na vida de um grande centro urbano. Consequentemente, as queixas subjetivas que correspondem aos incômodos para quais o sujeito contemporâneo está mais sensível, são os efeitos daquilo que, na literatura freudiana, se nomeou como neuroses atuais (psicastenias e neuroses de angústia, no interior das quais se situariam os fenômenos psicossomáticos, certos fenômenos depressivos e os fenômenos do pânico), neuroses traumáticas (intrusões do real provocadas pela exposição do sujeito, na ausência de mediações do simbólico – ausência tão mais efetiva quanto mais se viver sob o declínio social da função paterna – a certas experiências advindas seja da ambiência, seja de alguma ingestão tóxica, seja de alguma alteração súbita da corporalidade, seja esta mórbida ou funcional – como a metamorfose pubertária) ou neuroses narcísicas (instabilidades narcísicas às quais o esperado seria que as estruturações advindas do édipo pudessem ter normativizado – episódios alucinatórios fora de uma estrutura especificamente psicótica, fenômenos hipocondríacos, anorexias, bulemias, melancolia ).
Outros efeitos sintomáticos contemporâneos que escapam às fronteiras simbólicas das estruturações estão situados no que podemos chamar de modalidades neuróticas de invejar o suposto gozo perverso – suposto pelo neurótico, evidentemente – entre estes se encontram as toxicomanias, o alcoolismo, as violências gratuitas, as compulsões aos esportes radicais, o fascínio pelo risco nos jogos de azar e aquilo que Contardo Calligaris isolou para designar as montagens perversas nos laços coletivos entre neuróticos e nas corporações do social, montagens cujo espectro de manifestações vão desde a mais prosaica armadilha ao semelhante, por parte daquele a quem “mais vale perder um amigo do que deixar escapar a oportunidade de fazer um ‘bom’ gracejo com a devassa do outro”, até a especificidade do laço social que caracterizou a expansão e o exercício do genocídio no espaço dominado pelo Nazismo. Destes últimos efeitos sintomáticos, entretanto, não é muito de se esperar que eles, por eles mesmos, venham a gerar demanda para uma análise, posto que estes, estes sim, produzem gozo.
Gozo ruinoso, entretanto, mas ainda assim, gozoso. Gozo cujo fascínio remonta ao real da pulsão de morte no que ela não cessa de não se inscrever no inconsciente, logo pulsionalidade locada no Isso e não amansada pela Lei, locada no Isso de onde ela espera o momento propício para irromper no sujeito. Pulsionalidade barrada, mas não recalcada pelo édipo, como aquilo que desde o auto-erotismo da sexualidade perversa polimorfa infantil tendia a se incorporar ao Outro materno real e que ao retornar pede por nada menos do que a indiferenciação, o desaparecimento do próprio sujeito, tendência contra a qual, às vezes e com maior freqüência na contemporaneidade, o narcisismo deixa de se opor com a convocação de alguma fobia. Mesmo fenomenicamente assumindo as figuras de uma sóbria elegância ou ainda as do mais vil sadismo, essas formas não podem senão nos fazer pensar, a nós, armados pela experiência freudiana, nos destinos do que Freud nomeou como o masoquismo originário desde o seu O problema econômico do masoquismo (1924) . Parte de nossa leitura desde texto freudiano a compreensão que temos alcançado tanto da pulsão de morte e do princípio nomeado como além-do-princípio-do-prazer, ambas noções nada simples da obra freudiana, quanto da mais radical entre as intrusões do real de que fala Lacan – aquela que remete para além do que é inconsciente – e da modalidade menos subjetivante entre as modalidades pelas quais Lacan identifica o gozo – o gozo ruinoso, como teorizado no seu Seminário XVII, O avesso da psicanálise (1969-70) .
Com o acima articulado, pudemos expor por onde a modernidade, enquanto um fenômeno histórico e de civilização, produz seus efeitos, e até que ponto, na organização mesma da subjetividade. Resta situarmos aí o quanto o trabalho psíquico da adolescência possa nos testemunhar sobre essa atividade solidária entre a modernidade e o aparelho psíquico.
4. Até aqui, a ordem de exposição que adotamos invertia a ordem da investigação por onde íamos descobrindo a eficácia subjetiva do fenômeno da modernidade. Nosso ponto de partida foi a psicanálise, e a psicanálise com adultos. A adolescência tornou-se para nós uma inquietação na decorrência desse trabalho em andamento e foi para elucidá-la que chegamos a considerar a modernidade como essa região do campo do Outro capaz de produzir efeitos sobre o sujeito. Neste momento, apresentaremos em breves linhas o que temos avançado sobre a adolescência para, em seguida, sublinharmos a íntima articulação que une esta operação psíquica à modalidade contemporânea da modernidade.
Comecemos marcando que o tema da adolescência não nasceu como um conceito psicanalítico. Quando, no verão de 1991-92, redigimos o nosso Sobre o lugar da adolescência na teoria do sujeito , foi necessário desconstruirmos essa noção, tal como utilizada pelo senso comum e pela mídia e, em seguida proceder à sua reconstrução enquanto conceito psicanalítico e lugar tenente de uma especificidade estrutural na constituição subjetiva de homens e mulheres na contemporaneidade.
Para nós, a adolescência diz respeito a uma operação psíquica que a contemporaneidade tornou necessária, no presente, para que um(a) jovem possa vir a inscrever no simbólico, por meio desse trabalho psíquico, o enigma siderante do real a que veio a se tornar a metamorfose pubertária, na ausência da eficácia implícita outrora no dispositivo simbólico-societário presente em um rito de passagem, no lugar que a este era reservado numa comunidade tradicional. Esse dispositvo consistia numa das materializações, em meio aos laços sociais de uma coletividade, da função paterna, função cujo declínio no social viria a caracteriar a socialidade no mundo contemporâneo. Quando ainda se podia esperar alguma força na eficácia constituinte, para o sujeito tornado um adulto entre outros de sua comunidade, dos ritos de passagem, a enigmaticidade presentificada pela emergência da puberdade seguiria por uma via – preparada pelo rito, pela sua preparação, pela dramatização do cerimonial que o encerrava, pela transmissão e nomeação que ele cumpria e pelo efeito de Nachträglichkeit que a ele se seguiria – por onde aquela enigmaticidade viria a ser transliterada ao simbólico por ação dos próprios laços da tradição e sem nada mais aguardar do sujeito se não o que lhe prescrevia a sua participação no rito. Na modernidade contemporânea os ritos, quando não desapareceram, foram reduzidos em sua eficácia e deslocados de seu antigo lugar central na vida coletiva. A operação de transliteração do real ao simbólico não pode mais, portanto, conduzir-se desde o exterior, desde esse lugar do campo do Outro onde antes havia a eficácia do rito. Aquilo que desapareceu no exterior haverá, então, de ser reinstituído intrapsiquicamente. A essa exigência de trabalho psíquico, necessária para que um sujeito venha a construir para si uma paternidade Outra, Outra que não a edípica, corresponde a adolescência enquanto operação psíquica.
A operação da adolescência, enquanto trabalho psíquico, define-se por sua finalidade: construir aquilo que desde a ação da modernidade veio a faltar nos laços sociais, ou seja, essa função paterna cuja eficácia habilita a um sujeito transitar na coletividade sem a tutela de seu meio familiar infantil. Essa função paterna é um nome abreviado, cifrado, que nomeia o conjunto daquilo de que alguém precisa dispor para circular socialmente após a puberdade e emancipado de sua proteção infantil, ou seja, esse alguém precisaria de certos meios para ter acesso ao Outro sexo, para se fazer reconhecer, para vir a atingir alguma forma de troca com seu entorno por onde ele poderá cuidar de receber o seu sustento. Um psicanalista sabe porque se nomear como paterno ao conjunto destes dispositivos. Pai é o nome do lugar onde se inscreve tudo aquilo que se encontra, ou a que se apela, ou mesmo que se constrói, no lugar dos recursos pelos quais nos sustentamos no Outro para estarmos face à face com os outros.
Ter acesso ao Outro sexo, fazer-se reconhecer, trabalhar: o conjunto destes objetivos definem o final da adolescência, e este final só será atingido quando a operação da adolescência lograr remover o que faz obstáculo para o seu alcance. Operar por sobre esses obstáculos, aliás, é o essencial mesmo do processo, de tal forma que, se esses possíveis obstáculos forem defensivamente elididos ou se o jovem vier a se inibir diante dos mesmos, a operação corre o risco de fracassar. O lugar da análise, aqui, se define como esse campo onde, suportado pela transferência, o confronto com os obstáculos possa não ser evitado, mas, ao contrário, experimentado e efetivado. Em outro lugar retornaremos à análise e ao analista diante do adolescente, pois aqui nosso tema é outro.
Acesso ao Outro sexo, fazer-se reconhecer, trabalhar: o que isso quer dizer? Responderemos em três partes e em resumos que apenas anunciam as questões, pois desenvolvê-las fugiria, aqui, de nosso tema.
(1) A experiência heterossexual do adolescente, tanto quanto a atuação freqüentemente homossexual da criança em suas experimentações durante o tempo definido por Freud como de latência, do ponto de vista da estrutura, ou não é sexual ou não se dá com um outro. O Outro sexo é alcançado através de uma descolagem da sexualidade infantil e é em relação ao infantil que ele é Outro. Alcançá-lo exige um passaporte específico e uma travessia pelo Outro pela via dos Nomes-do-Pai.
(2) O tema do reconhecimento surge como um tema caro a Lacan durante os anos cinqüenta. Pensamo-lo como de grande atualidade, a despeito de seu desuso explícito, ao lado de noções como as de inter-subjetividade e de palavra plena. A articulação entre esses três conceitos, uma vez considerada, permitiria-nos, é nossa aposta no presente, uma nova inteligibilidade do Lacan ulterior. Isso, olhando para a frente, poria nova luz ao anolamento do real, do simbólico, do imaginário e às páginas não desprovidas de hesitações que nos apresentam o Sinthome enquanto quarto aro do nó. Olhando para trás, reafirma a tese do desejo enquanto desejo do Outro e revê com originalidade a confusa separação, assumida em certos trechos do texto freudiano, entre a ordem do narcísico e a ordem da objetalidade. Olhando ao seu redor, dá acolhida a uma frase escrita por Lacan para a sua conferência de inauguração da Sociedade Francesa de Psicanálise, acontecida aos 8 de julho de 1953 e precedendo o Discurso de Roma, intitulada O simbólico, o imaginário e o real: “(...)o objetivo de toda saúde (...) não é (como se crê) se adaptar a um real [aqui querendo dizer ‘realidade’] mais ou menos bem definido, ou bem organizado, mas de fazer reconhecer sua própria realidade.” Esta idéia traz a vantagem, ainda, de podermos tomar o movimento de um sujeito fazendo-se endossar diante de uma coletividade, e através do Outro, como esse que é constituído por essa filiação, que o situa, e por certa originalidade, que o singulariza em meio à sua herança. Exatamente aquilo que, desde o Outro, o sujeito adolescente espera se ver confirmado.
(3) O trabalho é a via longa pela qual o jovem adulto substitui a via curta, mas infantil, do “papai me dê, papai compre para mim”. Aceder ao trabalho não é, freudianamente falando, ter uma mera ocupação remunerada. Se assim fosse, Freud exigiria mais do que o acesso ao amor e ao trabalho para considerar o percurso de uma análise cumprido. Trabalhar exige o expor-se, na materialização do mundo humano, dessa realidade subjetiva que de lá, após contornar um ponto terceiro, como o movimento do Witz (tal como entendido por Freud ), lhe retorna com o elemento para o seu sustento e com recursos para futuras exposições no mundo, isto é, para ulteriores trabalhos.
Se o leitor reler os três pontos acima enumerados, ele haverá de concordar que não se acede a nenhum sem o acesso simultâneo aos três. Aliás, eles não são três, mas um único, que se chama construção da Outra paternidade, construção visada pelo adolescer como operação psíquica.
Quanto tempo dura a operação da adolescência? O tempo necessário para se efetivar ou aquela construção, que finalizaria e cumpriria a finalidade da adolescência, ou a fixação da realidade do sujeito reduzida sob a forma da reificação da ilusão do indivíduo, como o quer uma coletividade que já perdeu a vocação pelo comunitário, o que seria o fracasso da adolescência. Trata-se, portanto, de uma temporalidade lógica, não cronológica, embora iniciada pela eclosão da puberdade e ao seu enigma buscando responder. A eclosão siderante da puberdade corresponderia ao instante de ver; o cumprimento da construção da paternidade seria o momento de concluir desta operação. Entre ambos teremos o tempo de olhar e as reviravoltas dialéticas que ele implica. Supõe-se que a adolescência dura apenas alguns poucos anos após a puberdade, outros pensam-na como sinônimo dos anos teens, alguns consideram-na sinônimo de juventude e outros diferenciam as duas categorias, muitos, ao modo do discurso legal, a identificam com a menoridade após os doze anos e muitos outros, como a medicina, pensam a adolescência como durando até certa maturação fisiológica (muito imprecisa, de qualquer forma, pois no organismo pode-se encontrar, natural e saudavelmente, ao mesmo tempo, tecidos precocemente senis e outros ainda se aprontando, mas com certa utilidade prática, tanto fisiológica quanto social, como na classificação de alguma gravidez). Nessas considerações não há conceito, só modos de dizer ou, no máximo, convenções, mesmo que com certa justificativa ad hoc. Só no campo da psicanálise a noção de adolescência, por definir-se como operação psíquica após ter sido separada de qualquer psicologia evolutiva, elevou-se à ordem do conceito.
5. Na expressão O adolescente e a modernidade, título que nomeia este Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões, sob a coordenação desta Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro, estão articuladas duas categorias onde cada qual exige a presença da outra. A modernidade não se efetivaria no mais íntimo da carne da subjetividade se os entes humanos, sob sua vigência, não viessem a adolescer. O adolescente, por sua vez, não teria existência se não fosse como efeito da ruptura dos laços societários que a idade contemporânea da modernidade veio a impor por sobre os laços da tradição. Mas a adolescência do adolescente só é solidária à modernidade quanto à sua existência, pois quanto ao sentido do seu trabalho psíquico, simultaneamente intra e trans subjetivo, ela a subverte por visar construir o que vem a repor a equivalência da paternidade que a modernidade visava fazer declinar. Isto, para nós, é o que dá conta dessa tensão que, simultaneamente, une e separa o adolescente e a modernidade.
Instaurada na contemporaneidade e tornada amplamente necessária em todo o Ocidente como instituinte da subjetividade adulta há não mais que quatro décadas – portanto nosso objeto não pertence ao reino da natureza – , a adolescência se situa como uma específica neurose traumática que inventivamente luta pela causa do sujeito na resposta ao trauma em que se tornou, com a modernidade, a eclosão da puberdade.
Adolescer é produzir um segundo tempo constitutivo da subjetividade que o mundo contemporâneo tornou necessário com o declínio da função social da paternidade: se, com o édipo o sujeito se constituiu pela interdição da endogamia, após a latência, com o adolescer, o sujeito, antes de se tornar adulto, haverá de ser re-constituído pela homologação da exogamia.
A adolescência se põe, portanto, como um possível quarto aro no nó borromeano de quatro aros, a fim de dar sustentação a um sujeito adulto futuro enquanto Sinthome. Afinal, num mundo novo onde, para além de se ter instituído, com o declínio da função social da paternidade, a necessariedade do adolescer – a mais benígna entre estas novidades clínicas – , se impõe, como mencionamos antes, tantas novas modalidades de economia do gozo, todas antagônicas à ordem da realidade do desejo humano, nesse admirável mundo novo, a possibilidade e a qualidade da vida e da socialidade humanas dependerão da qualidade desse Sinthome cujo tecido vem sendo produzido no tear da adolescência. O psicanalista encontra aqui, portanto, boa parcela de sua responsabilidade.
BIBLIOGRAFIA
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Rodolpho Ruffino
Psicanalista
Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
Exerce a clínica psicanalítica com adultos e adolescentes em São Paulo
R. Curt Nimuendaju, 58 – Bairro das Perdizes
CEP 05015-010 São Paulo SP
TEL. (0**11) 3871.4501
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